O travão no aumento das rendas e Menezes Leitão sem travão
Carmo Afonso Advogada
Não digo que o tema seja simples. Falo do aumento das rendas para 2024 e da hipótese de ser fixado novo travão a este aumento. Está em causa a conflitualidade existente entre o direito à habitação e o direito à propriedade privada. Quando digo que não é simples, significa que reconheço a importância do direito à propriedade e que reconheço que ele costuma ser central como objetivo na vida dos portugueses. Reconheço igualmente que a maior parte dos proprietários em Portugal são pessoas que trabalharam arduamente para ter esse património e que tê-lo não determina necessariamente que sejam de uma classe socioeconómica privilegiada. Já agora: reconheço como irritante algum discurso à esquerda que, à partida, hostiliza os proprietários e diaboliza os senhorios. Ser senhorio não é uma falha moral, perdoem-me alguns camaradas.
Esta introdução foi mesmo necessária. Porquê? Porque ouvi a entrevista de Luís Menezes Leitão, em representação da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), à TVI e CNN Portugal. Falava do aumento das rendas e deste Governo. Foi uma inspiração.
Ouvir Luís Menezes Leitão é ficar consciente e alerta para tudo o que não se deve fazer quando se pretende defender um determinado ponto de vista ou, como é o caso, um determinado interesse. E a primeira coisa que não se deve fazer é ignorar a situação de quem está no lado oposto. Para Luís Menezes Leitão existem os superiores interesses dos senhorios e pouco mais. Nem uma palavra acerca das circunstâncias em que se encontram milhares de inquilinos e outros tantos que nem conseguem arrendar casa.
Não considera que exista alguma diferença entre rendimentos do trabalho e rendimentos de capital, onde se incluem as rendas. É tudo igual. Esta é uma questão à qual a esquerda, e até a social-democracia à direita, não deveriam ficar indiferentes. Equivaler o valor produzido pelo trabalho ao valor correspondente à remuneração do capital é ignorar princípios básicos. Não é preciso chamar o Marx e invocar a luta de classes. Dizia que não é preciso, mas é certo que — ao aferirmos que parte dos rendimentos produzidos em Portugal fica nas mãos dos trabalhadores e que parte se destina à remuneração de capital — ficamos a saber qual o ponto de situação no que diz respeito à luta de classes em Portugal.
Na verdade, Menezes Leitão até posiciona o direito dos senhorios a atualizarem as suas rendas na medida da taxa de inflação acima do direito dos trabalhadores a verem os salários aumentados com base no mesmo raciocínio. Sabemos que os trabalhadores não viram os seus salários aumentados nessa proporção. Muito longe disso. Ora, na referida entrevista o representante da ALP disse que os senhorios, se existir novo travão ao aumento de rendas, serão o “único sector” a não estar protegido do aumento da inflação. Esqueceu-se dos trabalhadores, ou seja, esqueceu-se de cerca de metade da população portuguesa.
Menezes Leitão exige um aumento das rendas proporcional ao da inflação independentemente de quaisquer circunstâncias. Aconteça o que acontecer e doa a quem doer. Interessa-lhe simplesmente que os senhorios não percam poder de compra. Essa é, aliás, a única razão para a exigência. Do que se sabe os senhorios não tiveram aumentos relevantes de custos e despesas com a propriedade, ou seja, não têm nenhuma outra justificação para aumentar o valor dos arrendamentos.
Também é fascinante a forma como denuncia a “obstinação ideológica” deste Governo e o seu “ódio à propriedade privada.” São afirmações, no mínimo, delirantes. Quem no seu perfeito juízo consegue fazer tais acusações a este Governo? Bom, já sabem: o Luís Menezes Leitão.
Já as rendas são todas baixíssimas, menos as do “mercado no segmento de luxo.” Alguém poderia oferecer uma televisão ou a assinatura de um jornal a este homem? Mas prossegue: “As famílias não podem pagar. Bom, e a questão que se coloca é esta: mas nós obrigamos os supermercados a baixar o preço dos alimentos?” Quer isto dizer que, se não podem pagar, temos pena. Também estão a comprar os alimentos mais caros: é a vida.
A insensibilidade presente no discurso do representante da ALP e a total desresponsabilização perante o conceito, que deveria conhecer, de função social da propriedade são marcantes. Esta voz dos senhorios é profundamente lamentável. O Governo está a promover uma reunião com as várias entidades que representam senhorios e inquilinos para chegarem a um entendimento. Desejo-lhes muita sorte. Vão precisar. publico.pt/assinaturas
Desporto
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2023-09-22T07:00:00.0000000Z
2023-09-22T07:00:00.0000000Z
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