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José Luís Carneiro, a esquerda de que a direita gosta

Carmo Afonso Advogada

José Luís Carneiro afirmou que viabilizaria um governo PSD para impedir o Chega de chegar ao poder. A afirmação demonstra espírito democrático. José Luís Carneiro faz parte de um partido que obteve nas últimas eleições uma maioria absoluta. Daí, parte com extrema humildade para um cenário em que seria capaz de fazer um sacrifício político em nome de um objetivo que o PS de Costa anunciou amplamente: o de manter o Chega longe da governação. Mas reparem que nunca ouvimos António Costa afirmar que viabilizaria um governo PSD. Reparem também que verbalizar essa hipótese retira ao PS a aura de vencedor que estamos habituados a conhecer. Será boa estratégia?

O que José Luís Carneiro está a fazer é antecipar o cenário da sua derrota eleitoral. Só por si já não é grande coisa. Mas vai mais longe: disponibiliza-se para solucionar o problema que seria criado com essa derrota, ou seja, anula a ameaça de entrada do Chega no arco de governação. Nas últimas eleições, o PS conseguiu capitalizar o receio dos portugueses numa vitória da direita, aproveitando, e de forma exímia, o facto de Rui Rio nunca ter esclarecido se faria, ou não, acordos com o Chega. Foi um dos ingredientes da maioria absoluta. Agora, José Luís Carneiro desarma essa ameaça e esclarece que, consigo à frente do PS, já se pode votar PSD. Não, não é boa estratégia.

Em relação a acordos à esquerda, José Luís Carneiro é mais criterioso. Não os fará com BE e PCP pelas posições que estes partidos manifestaram em relação à guerra na Ucrânia e à guerra no Médio Oriente. Pergunta-se novamente: será boa estratégia?

Não vou mentir. Claro que temos assistido a uma tentativa de condicionamento do BE e do PCP de todas as maneiras possíveis. Os dois partidos que tiveram um papel decisivo na luta contra a ditadura e na conquista e consolidação da democracia (o BE é um partido recente, mas a UDP estava lá) são referenciados como se fossem partidos extremistas e antidemocráticos. As duas forças políticas que mais se batem pelos direitos dos trabalhadores e pelo combate às desigualdades sociais são categorizadas como iguais a partidos extremistas como o Chega. É esta narrativa que José Luís Carneiro parece não se importar de encorajar.

A tendência para a demonização do PCP e do BE agravou-se com a guerra da Ucrânia. Acontece que a forma indiscriminada com que se fala da posição dos dois partidos em relação à guerra da Ucrânia — como faz José Luís Carneiro — revela bem a má vontade que move quem o faz. A posição dos dois partidos não é a mesma e nem ao menos é aproximada. Fazer de conta que têm a mesma posição e usar isso como argumento político espanta, vindo de alguém à esquerda.

Já em relação à posição destes partidos face à guerra no Médio Oriente, não vejo que fique bem a um candidato a líder do PS criticar aquilo que defendem. Não é só uma questão de ser má estratégia. Aqui, importa mesmo perguntar a José Luís Carneiro se é ou não a favor de um cessar-fogo imediato que possa poupar milhares de vidas de civis palestinianos. E perguntar-lhe também qual a sua posição em relação à ocupação israelita da Palestina. Ao repudiar entendimentos à esquerda por causa da guerra no Médio Oriente, José Luís Carneiro está a distanciar-se dos únicos partidos que, de forma inequívoca, condenam a atuação do Estado de

Israel, que já matou cerca de 12 mil civis palestinianos. A posição do BE e do PCP em relação a esta guerra é a do cumprimento do direito internacional e humanitário; vai no sentido daquilo que o próprio António Guterres defende.

José Luís Carneiro prefere apoiar e, mais do que isso, fomentar, o preconceito ignorante e por vezes mal-intencionado contra a esquerda. Não se esperaria que um candidato ao maior partido deste espectro içasse tal bandeira. A mensagem política que passa é: antes um entendimento à direita que um entendimento à esquerda. As razões que invoca são irrelevantes. Esse é o miolo que fica.

A “geringonça” foi favorável ao PS. Talvez o PCP e o BE não possam afirmar o mesmo. Não falo apenas de ter permitido ao PS formar Governo. Falo também do excelente resultado que o PS obteve nas eleições seguintes. Isto é objetivo. Qualquer pessoa razoável pode antecipar que um entendimento com o PSD, nos termos equacionados por José Luís Carneiro, comprometeria o PS e a sua capacidade para ganhar eleições no futuro. Tudo isto pode até ser uma boa estratégia, mas não para o PS.

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2023-11-20T08:00:00.0000000Z

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