Quarenta mil carros no meio do deserto
De onde vieram estes veículos? Que história guardam? Ajudaram o Mundial? O lado menos brilhante do Qatar
Diogo Cardoso Oliveira, em Doha
Uma sucata no deserto
A cerca de 25 minutos de Doha, existe um sítio ermo e sinistro, no meio do deserto. Pouco ou nada acontece por ali, a não ser calor, vento, silêncio, muito pó e um ou outro latir canino. Não é um local turístico, longe disso, algo que fica claro pela pergunta do motorista do Uber: “De certeza que é aqui que fica?”
Era mesmo ali. Ali, no ferro velho de Al Wukair, local que pelo número de veículos que por lá estão faz pensar se não é lá que desaguam todos os monos motorizados do Médio-Oriente e arredores.
Vinte dias depois de chegarmos ao Qatar, podemos dizer que este é um dos locais mais interessantes que vimos. Não é bonito e não dá sequer ares de Qatar, um país cada vez mais aplicado no ímpeto moderno e vanguardista das suas construções.
E até podemos dizer que é algo sinistro, que o lado sombrio de todo aquele ambiente chega a ser assustador, sobretudo para um europeu citadino no meio do nada.
Porém, tem algum charme. O que há de charmoso num monte de carros sujos? São veículos cobertos de pó, bem organizados em fileiras numa longa espera por uma nova vida. Outros esperam apenas por um fim — e pode ser mais digno ou mais dramático. E também esse desfecho tem que ver com a história que os levou até ali.
Nem todos para leilão
Por ali, há carros pequenos, médios e grandes. Há motos e jipes. Também há camiões, muitos autocarros, escavadoras, algumas motos de água e uma boa variedade de barcos. E areia — nuns sítios perfeita e soltinha, noutros com lixo automóvel e pedaços de veículos.
Num momento de pura fortuna, quando nos aproximamos da entrada, está a chegar, de reboque, uma carrinha de caixa aberta. Para a cidade, é um veículo velho. Aqui, é um veículo novo. O mais recente morador.
De onde veio? Que história conta? Não sabemos. Mas provavelmente ficará por cá muito tempo. “São carros que pertencem ou pertenceram a pessoas. Podem vir de acidentes, de terem sido abandonados ou rebocados, porque há pessoas que não limpam os carros. Normalmente, ficam por cá uns seis meses. Se ninguém os reclamar, depois o caso vai para tribunal e eles decidem se é leilão, vender ou destruir”, explica Harman, o guarda que é a única pessoa presente naquele local.
Os casos de leilão ou venda aplicam-se sobretudo aos clássicos, que ficam alojados numa parte VIP do ferro velho. Até num sítio destes, o privilégio tem de funcionar. Para os carros “banais”, o fim pode ser a destruição pura e dura, para reutilização, ou eventual reaproveitamento de peças.
Neste ferro velho, há um pouco de tudo. Carros velhos a pedirem reforma. Carros destruídos. Carros semidestruídos. E carros impecáveis — são esses os que mais inquietam, sobretudo aqueles que ainda têm objectos pessoais ou traços de secularidade.
“Temos todo o tipo de carros. E todos os dias vem cá alguém reclamar um carro. Mas não é fácil. Há um procedimento: trazer os documentos do carro, muitos detalhes e muita papelada”, detalha Harman.
O que é que esta sucata tem que ver com o Mundial 2022? Pouco ou nada. A única coisa que liga este ferro velho ao certame qatari é a presença de veículos que ajudaram a tornar o Mundial possível.
Pôr “comida na mesa”
“Sim, há aqui qualquer coisa. Há camiões usados na construção dos estádios. Pelo menos, dois ou três sei que há. E alguns veículos que transportaram materiais também”, explica o guarda.
É um simpático queniano que nos conta que estão por ali entre 30 e 50 mil carros — se tivéssemos de apostar, avançaríamos com um número bem maior, mas Harman saberá do que fala.
Trabalha ali há dois anos e, questionado sobre se gosta do que faz, mostra-se resignado: “Mesmo que não goste, vou fazer o quê? Até posso não gostar, mas como vivo? Como ponho comida na mesa? Não é um mau local, não há muita pressão. É calmo.” Lá calmo é, sem qualquer dúvida. E não é desprovido de emoção. Harman conta que, um dia, receberam um carro que era um Ford igual ao que o seu pai conduzia no Quénia. Diz que foi o melhor momento que teve.
Campeonato Do Mundo De Futebol 2022
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