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Um raro saleiro afro-português com mais de 500 anos foi vendido por 889 mil euros

Estado português quis comprar a peça, mas o dinheiro não chegou. A leiloeira Sotheby’s não revelou quem a adquiriu

Lucinda Canelas

Um saleiro sapi-português em marfim foi vendido ontem por 889 mil euros num leilão da Sotheby’s em Paris. O Estado português estava na corrida a este artefacto raro, produzido na Serra Leoa no final do século XV ou no início do século XVI, mas os 500 mil euros de que a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) dispunha para o comprar ficaram muito aquém do suficiente para garantir a sua integração nas colecções nacionais. A base de licitação fora fixada nos 250 mil euros.

O subdirector do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) Anísio Franco, que licitou o saleiro em representação da DGPC, garantiu ao PÚBLICO que a peça “foi muito disputada, como seria de esperar”. Para o conservador de escultura, é “uma pena” o Estado não ter conseguido adquirir esta “peça lindíssima, que faria todo o sentido ter no MNAA”. A leiloeira não revelou a identidade do comprador.

Esculpido em marfim, e com 25 centímetros de altura, o saleiro tem serpentes na base e, no topo, quatro aves em torno do que parece ser um cesto. Comparado com exemplares semelhantes, aparenta simplicidade, mas a mestria com que foi executado, a sua sofisticação, nota-se em cada pormenor da decoração.

Feito por artistas africanos sob encomenda portuguesa, integra um grupo restrito de objectos que testemunham os primeiros tempos da exploração do continente africano pelos europeus, ainda mais restrito tendo em conta a sua complexidade. “Sapi” era o termo usado pelos navegadores e mercadores portugueses para se referir aos habitantes da costa da Serra Leoa.

Nos museus portugueses há apenas um saleiro sapi-português, pertencente à colecção do MNAA, e está incompleto. “Notável e raro exemplo das peças que chegavam a Lisboa nos séculos XV e XVI, provenientes da costa ocidental africana”, diz a sua ficha, difere do ontem leiloado porque a sua decoração, muito mais profusa, inclui várias figuras, entre elas um cavaleiro português.

“Temos apenas metade do saleiro e, ainda assim, é uma peça importantíssima”, diz Anísio Franco, para quem estes objectos continuam a ser um mistério. “Os saleiros sapi, muito menos comuns do que as colheres e os olifantes [trompetas de caça] também da Serra Leoa, seriam presentes diplomáticos, instrumentos de propaganda política dos portugueses, que através deles diziam ‘nós chegámos a esta parte de África que os outros europeus ainda não conhecem’. Mas não sabemos que função teriam a nível local.”

Se fossem só objectos para exportação, que combinassem o saber fazer africano com modelos europeus, encontrar-se-iam peças semelhantes noutras geografias por onde andaram os portugueses, argumenta. “Na Índia e no Ceilão [actual Sri Lanka], temos artistas a trabalhar muitíssimo bem o marfim — porque não temos peças semelhantes a estas lá? Se o modelo era nosso, porque não os temos na ourivesaria de aparato portuguesa?”, questiona. Para Anísio Franco, não há dúvidas de que a figura humana em peças como a agora vendida é uma encomenda nacional, mas o que dela resulta é produto de uma “interpretação local, regional, muito singular”.

João Magalhães, um dos directores da Sotheby’s, também sublinha a raridade deste saleiro, em particular atendendo à qualidade da sua execução — “primorosa, excepcional”, nas palavras de Anísio Franco — e ao seu “óptimo” estado de conservação. “As peças sapi-portuguesas que chegaram até nós são muito poucas, e saleiros assim, então, são raríssimos”, sublinha, lembrando que este foi comprado, no início dos anos 1980, para a Colecção G. C. Marsiletti, de Vicenza, Itália, e já esteve exposto internacionalmente.

Segundo o catálogo do leilão, a peça é também referida em livros da especialidade, com destaque para obras do historiador de arte africana Ezio Bassani (1924-2018), e em particular o volume de que foi co-autor com o curador-chefe do departamento de etnologia do Museu Britânico William Buller Fagg (19141992), Africa and the Renaissance: Art in Ivory (1988).

João Magalhães nota que o valor atingido foi ao encontro das expectativas da leiloeira, provando que, apesar do debate em torno da produção artística feita em contexto colonial e das limitações impostas à circulação de artefactos em marfim, “as obras-primas encontram sempre compradores entre os grandes coleccionadores públicos e privados”.

Devido ao material de que é feito, o saleiro só poderá deixar a União Europeia se tiver sido vendido a um museu, explica este especialista da Sotheby’s, reconhecendo que pouco se sabe sobre a peça até à sua chegada à Colecção Marsiletti. “Sabemos que havia peças sapi-portuguesas em grandes colecções italianas, como a da corte dos Médicis, mas não conhecemos o percurso que esta fez até ser comprada há mais de 40 anos.”

O galerista Mário Roque, que na semana passada levou à Feira de Arte e Antiguidades de Paris duas peças sapi-portuguesas (uma colher e um olifante), também licitou o saleiro, mas não logrou comprá-lo.

Datava de 2008 a última vez que um saleiro sapi-português apareceu no mercado. Foi também a Sotheby’s a leiloá-lo e a transacção levantou protestos, porque o então Instituto de Museus e Conservação autorizou a exportação do bem sem pedir um parecer técnico. A peça estava no país havia então 25 anos e acabou vendida por 1,3 milhões de euros.

Cultura

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2023-11-29T08:00:00.0000000Z

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