Dois registos fonográficos com Grândola propostos para Património Nacional
Proposta que hoje será entregue à tutela abrange as bobinas usadas como senha do 25 de Abril e também o registo do concerto de 29 de Março de 1974
Nuno Pacheco
O pretexto são os 50 anos do 25 de Abril. E a proposta tem por objectivo salvaguardar dois registos fonográficos que documentam a importância da canção Grândola vila morena, de José Afonso, no contexto do levantamento militar que derrubou a ditadura. A iniciativa é da Câmara Municipal de Grândola e Direcção Regional de Cultura do Alentejo e a proposta, com um dossier fundamentado, vai ser hoje entregue, pelas 14h, na DirecçãoGeral do Património Cultural (DGPC), no Palácio da Ajuda. Uma hora depois, pelas 15h, realiza-se na Casa do Alentejo, em Lisboa, uma cerimónia para tornar pública a oficialização de tal acto.
Não se trata de Grândola, a canção, porque esta já está abrangida pela classificação de toda a obra fonográfica de José Afonso “como um conjunto de bens móveis de interesse nacional”, decidida pelo Ministério da Cultura e objecto de anúncio oficial (n.º 211/2020), publicado em Diário da República no dia 2 de Setembro de 2020. Trata-se, isso sim, de dois documentos de que Grândola faz parte.
O primeiro é a fita magnética com o momento em que a canção foi usada como segunda senha do 25 Abril, fita essa que faz parte do acervo da Fundação Mário Soares e Maria Barroso. E o segundo é a gravação, igualmente em fita magnética, do I Encontro da Canção Portuguesa, em 29 de Março de 1974, no Coliseu dos Recreios, onde Grândola foi cantada a plenos pulmões e de forma emotiva, quer pelos cantores no palco, quer pelo público que enchia por completo a sala. Esta gravação, em duas bobinas, é propriedade da RTP.
Ana Paula Amendoeira, directora regional de Cultura do Alentejo, fala ao PÚBLICO com entusiasmo desta iniciativa: “Quando comecei a trabalhar nisto, para que propuséssemos a classificação destas peças, a resposta que tive logo foi: ‘Ah, isso já não existe; na altura gravavam coisas por cima…’ Mas recusei-me a acreditar, tinha a certeza que tinham de estar nalgum sítio e na verdade estavam! Uma delas está no arquivo da RTP, que já nos autorizou e escreveu até uma carta muito simpática a associar-se a esta nossa proposta; e a outra está na Fundação Mário Soares e Maria Barroso, que também nos autorizou a fazer a proposta. Porque o que vamos propor para classificar é a materialidade das fitas, a autenticidade daqueles registos.”
Daqui até à UNESCO
Propostos agora para Património Cultural Nacional, existe uma ambição maior. “A minha intenção”, explica Ana Paula Amendoeira, “era que a classificação fosse feita primeiro pelo Estado português, naturalmente, mas depois proposta à UNESCO para classificação como Memória do Mundo, tal como estão a Carta de Pêro Vaz de Caminha e outros documentos.”
Este projecto está integrado no programa comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril pela Câmara de Grândola, que será apresentado na Casa do Alentejo pelo seu presidente, António Figueira Mendes, na presença de Ana Paula Amendoeira, de representantes da Associação José Afonso, do comandante Carlos Almada Contreiras (que
A minha intenção era que a classificação fosse feita primeiro pelo Estado português, naturalmente, mas depois proposta à UNESCO como Memória do Mundo Ana Paula Amendoeira Directora regional de Cultura do Alentejo
indicou a Grândola como senha da operação militar Fim Regime), de Paulo de Carvalho (intérprete de E depois do adeus, primeira senha para o 25 de Abril), que integrará o programa musical das comemorações, e de André Carrilho, o ilustrador que criou a imagem gráfica das comemorações grandolenses.
Recorde-se que o levantamento militar que derrubou a ditadura em 25 de Abril de 1974 teve duas senhas radiofónicas. A primeira, transmitida por João Paulo Diniz aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa, foi a canção E depois do adeus, de Paulo de Carvalho, que tinha ficado em primeiro lugar no Festival RTP da Canção desse ano. Foi emitida às 22h55 do dia 24 de Abril de 1974, como ordem para que as tropas se preparassem e estivessem a postos, até que fosse dado o segundo sinal. Este foi a emissão, por Leite de Vasconcelos, no programa Limite, da Rádio Renascença, da canção Grândola vila morena, depois de dizer, seguidos, os seus quatro primeiros versos. Foi às 0h20 de dia 25 de Abril de 1974, para que as tropas saíssem dos quartéis rumo à sua missão.
Grândola, de 1964 a 1974
A história de Grândola vila morena começou anos antes de ser transformada em canção, como um simples poema de agradecimento. José Afonso aparecera na RTP, o que era raro, onde cantou “umas baladas de Coimbra”. Em Grândola, na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (fundada a 1 de Maio de 1921 e conhecida por “Música Velha”) a emissão foi vista com interesse e isso levou-os a convidá-lo para ali cantar. O que veio a acontecer no dia 17 de Maio de 1964, um domingo, anunciando-se “um espectáculo de fino gosto musical” com que a sociedade “deliciará o público”.
José Afonso estranhou os termos do anúncio (na primeira parte tocaria Carlos Paredes e na segunda ele, apresentado como “Dr. Zeca Afonso”), mas aceitou. E ficou encantado: com Paredes e com a colectividade, que ele viria depois a descrever como um “local obscuro, quase sem estruturas nenhumas, com uma biblioteca de evidentes objectivos revolucionários”. “Brutalmente satisfeito”, escreveu um poema de agradecimento.
E enviou-o à sociedade, onde quatro dias depois chegou às mãos de José da Conceição. Era assim: “Grândola vila morena/ Terra da fraternidade/ O povo é quem mais ordena/ Dentro de ti ó cidade// Em cada esquina um amigo/ Em cada rosto
igualdade/ Grândola vila morena/ Terra da fraternidade// Capital da cortesia/ Não se teme de oferecer/ Quem for a Grândola um dia/ Muita coisa há-de trazer.” O poema, tal qual, foi lido na estreia do grupo de teatro local, a 31 de Maio de 1964. Na terra e na Sala da Fraternidade.
Quando é editado o livro de poesia Cantares de José Afonso (Nova Realidade, 1967), Grândola é incluída quase no final com a nota de que se trata de uma “homenagem à Sociedade Fraternidade Operária Grandolense” mas reduzida às duas primeiras quadras. Só numa edição posterior, em 1971, é acrescentada uma terceira: “À sombra duma azinheira/ Que já não sabia a idade/ Jurei ter por companheira/ Grândola a tua vontade.”
Nesse mesmo ano, Grândola seria gravada, em França, integrando o álbum Cantigas do Maio (1971), com arranjos de José Mário Branco, que propôs que lhe fosse dado um tratamento de cante alentejano, para o que — como o próprio contou mais tarde — “convinha alterar a estrutura da letra, acrescentando a inversão das quadras tão típica desta forma coral”, simulando também os passos dos cantadores “no macadame da estrada, ao ritmo da canção”. Para isso, foram colocados quatro microfones no saibro do jardim do estúdio francês (o Château d’Hérouville), onde José Afonso, José Mário Branco e Francisco Fanhais, de braços dados, gravaram os passos às 3h da manhã.
Da Galiza às versões
Isso foi em Outubro de 1971. Sete meses passados, em Maio de 1972, convidado para cantar na Galiza, José Afonso cantará a Grândola em Santiago de Compostela, no dia 10 de Maio de 1972, perante centenas de pessoas reunidas no Burgo das Naçons. Ao que se diz, pela primeira vez em público. Como lembrou o jornal La Vanguardia de 22 de Maio de 1987, ao celebrar 15 anos da data (a citação é reproduzido no livro de Viriato Teles As Voltas de Um Andarilho, Assírio & Alvim, 2.ª edição, 2009), lembrando palavras de José Afonso: “A primeira vez que cantei Grândola foi na Galiza: toda a gente se entusiasmou e conseguiu-se criar um ambiente de fraternidade muito belo, punham-se de pé, cantavam, agitavam os braços.” Testemunhos recolhidos na Galiza, mais recentemente (e incluídos no livro José Afonso, o Triângulo Mágico na Sua Vida e Obra: África, Portugal, Galiza,
de Paulo Esperança, Ed. Sons da Terra, 2023), afiançam, porém, que José Afonso pode ter cantado Grândola em Valência, em 1970, no Festival dos Povos Ibéricos, antes de a gravar em disco.
Usada como senha do 25 de Abril pela força do poema e por não estar proibida pela censura, Grândola
teve logo em 1974 e 1975 inúmeras versões: Amália, Nara Leão, Maria da Fé, Shegundo Galarza, Roberto Leal, Paula Ribas, corais alentejanos (Cuba, Castro Verde), Aparcoa (Chile) ou Franz Josef Degenhardt (que a traduziu para alemão). A Associação José Afonso tem, online, umas 20 versões (Brasil, Finlândia, Portugal, Chile, Suécia, EUA, Alemanha, Países Baixos, França, Itália), enquanto o livro As Voltas de Um Andarilho regista mais de 50; e em www.artesonora.pt podem ver-se dez vídeos com Grândola cantada e tocada, entre outros, por Joan Baez (em Portugal) ou Charlie Haden com Carla Bley.
Cultura Programa Comemorativo Dos 50 Anos Do 25 De
pt-pt
2023-11-29T08:00:00.0000000Z
2023-11-29T08:00:00.0000000Z
https://ereader.publico.pt/article/282020447050726
Publico