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Portugal sem dados sobre pessoas com vírus que causa sida que estão em tratamento

Nos dados europeus revelados ontem não constam também os números sobre a supressão viral das pessoas com VIH

Tiago Ramalho

Relatório europeu do ECDC

Há cerca de 2,2 milhões de pessoas a viver com infecção por vírus da imunodeficiência humana (VIH) em toda a Europa, aponta o mais recente relatório do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC, na sigla em inglês). Só no ano passado houve 110 mil novos diagnósticos, a maioria na região leste da Europa. Em Portugal foram 804 novas infecções (um valor mínimo desde 1990), mas houve 7,8 diagnósticos por cada 100 mil habitantes — ainda acima dos 5,1 da média da União Europeia. No entanto, ao contrário da maioria dos países europeus, não há dados sobre as pessoas com VIH que estão em tratamento, nem as que estão com a carga viral suprimida (ou seja, que não transmitem o vírus) em Portugal.

“Não somos capazes de dizer, entre as pessoas que estão infectadas, quantas é que estão a ser tratadas e quantas estão suprimidas [viralmente]. Não é aceitável que em 2023 não tenhamos esta informação”, defende Henrique Barros, antigo coordenador do programa nacional do VIH/Sida e que até ao ano passado presidiu ao Conselho Nacional de Saúde.

As Nações Unidas estabeleceram três metas para 2025: diagnosticar 95% das pessoas com VIH, ter 95% dessas pessoas em tratamento e também 95% das pessoas infectadas com carga viral suprimida. Portugal está a cumprir a primeira meta — a Direcção-Geral da Saúde (DGS) estima que, em 2021, 94,4% das pessoas com VIH estavam diagnosticadas. No entanto, não se sabe em que ponto estão actualmente as outras duas metas.

Margarida Tavares, secretária de Estado da Promoção da Saúde, admite que esta ausência de dados é preocupante. “Enfrentámos dificuldades grandes durante a pandemia, inclusivamente houve um ano [2020] em que não foi publicado o relatório [do VIH/Sida], porque o SI.VIDA, o sistema de informação dedicado ao VIH, entrou em incapacidade de funcionamento e tivemos de o substituir no ano seguinte”, explica ao PÚBLICO. A substituição do SI.VIDA pelo sistema de vigilânmigrações cia epidemiológica nacional (o Sinave) permite apenas notificar o diagnóstico, sem possibilidade de avaliar a evolução ao longo do tempo.

“Durante o período da pandemia houve muitos atrasos e algumas coisas foram deixadas para segundo plano, incluindo as notificações [de novos casos de VIH]”, diz Daniel Simões, membro do Grupo Activistas em Tratamento (GAT). “Havia dados muito parciais e muito pouca informação face ao volume de pessoas [infectadas]. Foi decidido não reportar os dados, porque não corresponderiam à realidade nacional”, justifica Daniel Simões sobre a ausência de números portugueses sobre pessoas com VIH em tratamento e pessoas com carga viral suprimida.

Uma situação que a secretária de Estado corrobora: “Conhecemos dados locais e sabemos que temos taxas de supressão da carga viral na generalidade dos serviços acima dos 95%. Mas isso não é o total do país, nem é uma amostra representativa.” “Voltaremos a ter estes dados em breve”, estima.

Henrique Barros toma uma posição mais crítica face à falta de dados: “Há 15 anos que se iniciou um processo que devia permitir em Portugal termos informação de enorme qualidade sobre a performance e os resultados. Do ponto de vista das soluções tecnológicas, tudo isso foi feito, mas as máquinas sozinhas não trabalham – é preciso quem introduza a informação”, critica o epidemiologista, referindo-se à dificuldade na obtenção de dados hospitalares.

Europa aquém das metas

Se em Portugal não há dados que permitam avaliar a corrida até às metas de 95% em 2025, o cenário europeu também não merece notas positivas neste exame. Particularmente na Europa do Leste, onde estão 64% dos 2,2 milhões de pessoas com VIH no continente, indica o novo relatório europeu.

“Depois da covid-19 houve uma grande queda nos diagnósticos, muitos países diminuíram os testes e os clínicos foram chamados a acudir noutros locais. Mas depois deste período os diagnósticos voltaram a aumentar bastante. Algumas pessoas estão agora a ser diagnosticadas, mas também há muitos novos casos associados à migração”, explicou Anastasia Pharris, investigadora do ECDC, numa apresentação prévia dos resultados na Suécia. Este crescimento está muito assente em forçadas, como é o caso dos refugiados ucranianos, que representam 10% dos novos diagnósticos de VIH, sobretudo em pessoas que já sabiam ter VIH, mas fizeram novos testes para receber tratamento no país de acolhimento.

Anastasia Pharris traça um cenário assente em duas grandes dificuldades no contexto europeu. “Um dos grandes entraves é o diagnóstico. Assim que as pessoas são diagnosticadas, na maioria dos países há acesso a tratamento eficaz e, quando estão em tratamento, o vírus é suprimido e não transmitem VIH”, refere. “Outro problema é o intervalo de três anos entre a infecção e o diagnóstico. Este é o tempo médio — para alguns ainda é mais demorado”, realça em resposta ao PÚBLICO, referindo que metade dos novos diagnósticos ocorreu já em fases avançadas da infecção.

Ainda assim, o retrato global da Europa mostra uma disparidade desfavorável à Europa do Leste, onde a maior incidência de novos diagnósticos, menor acesso aos cuidados de saúde e estruturas de resposta menos capacitadas criam maiores dificuldades a estes países — em comparação com a Europa Central ou do Sul. Apenas no tempo médio entre infecção e diagnóstico há outra região em pior situação, neste caso, a Europa do Sul (na qual se inclui Portugal), cujo intervalo se aproxima dos quatro anos. Em 2022, mais de metade das infecções por VIH em Portugal foram diagnosticadas tardiamente, com particular preponderância entre os homens heterossexuais com mais de 50 anos.

Portugal tem reduzido a incidência de novas infecções nas últimas décadas. Em 2018, contudo, há cinco anos, o relatório do ECDC mostrava que Portugal era o quarto país da União Europeia com maior número de diagnósticos (10,3 em cada 100 mil habitantes). Este ano, a redução da taxa de novos diagnósticos para 7,8 por cada cem mil habitantes permite colocar Portugal abaixo de nove países da União Europeia nesta classificação, sobretudo devido ao valor mais baixo desde 1990 em novas infecções (804 em 2022).

Há 40 anos foi diagnosticado, pela primeira vez, um caso de VIH em Portugal. Nestas últimas quatro décadas foram notificados mais de 66 mil casos, dos quais mais de 23 mil tiveram sida (a fase mais avançada da infecção em que o sistema imunitário está mais vulnerável).

Não somos capazes de dizer quantas pessoas estão a ser tratadas e quantas estão suprimidas [viralmente]. Não é aceitável em 2023 Henrique Barros Epidemiologista

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2023-11-29T08:00:00.0000000Z

2023-11-29T08:00:00.0000000Z

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