Público Edição Digital

Portugueses ciganos forçados à vida nómada

Série (V) Um número indeterminado de famílias ciganas é forçado a mover-se sucessivamente de um sítio para o outro. Em Montemor-o-Novo, três núcleos familiares mostram que vida é essa

impossibilidade de a obter, os serviços municipais e as autoridades tendem a forçar a saída. Alguns passam multas às famílias.

Daquela vez, quando a GNR chegou, deparou-se com a antropóloga Agostina Nievas, que está a fazer um estudo etnográfico sobre famílias ciganas nómadas de Évora e de Montemor-o-Novo. Esta queixou-se ao Alto Comissariado para as Migrações (ACM), que depressa contactou a Câmara de Montemor-o-Novo.

Agostina e Natália foram recebidas na câmara. Pediram que pelo menos deixassem a família sossegada até ao final do ano lectivo. O que se pode exigir de crianças que vivem numa tenda e a qualquer momento podem ser forçadas a pegar nas trouxas, atrelar a carroça e zarpar?

Tânia, uma rapariga de 13 anos, frequenta o 5.º ano. Augusto e Lisandro, dois rapazes de nove e dez, o 3º. António tem cinco e não está no pré-escolar.

Conjuga uma deficiência motora com um défice cognitivo. Duas vezes por semana, tem terapias em Évora. Não falha, agora que os bombeiros voluntários garantem o transporte.

Não dispõem de computadores, livros ou brinquedos. Nem sequer de mesa de trabalho, cadeira ou banco. Vivem na privação material mais extrema. Em frente à tenda, apenas uma fogueira acesa e sobre ela uma cafeteira de água. Ao lado, um fogão mínimo, uma mesinha de plástico com louça por baixo e pão por cima, uma bacia de plástico com vegetais dentro, um bidão de água.

“Eles gostam muito de brincar à bola”, diz Natália. “Toda a hora tenho que mercar uma bola. Eles furam!” Uma vedação separa o terreno em que se encontram acampados do Parque Desportivo de Montemor-o-Novo. Num instante, a bola esburaca ou salta para o outro lado. Agora divertem-se num jogo inventado.

Tudo o que podiam oferecer a Natália era a possibilidade de acampar num terreno camarário, com casas onde foram alojadas famílias ciganas que ela não conhece. Pela tradição, a autorização para viver num local é concedida pela família que ali está há mais tempo.

Número indeterminado

Num estudo de 2015, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana estima que haja 3012 famílias a viver em barracas, acampamentos ou alojamentos móveis, um terço (32%) do total de famílias portuguesas ciganas. Juntando toda a gente que em Portugal vive nestas condições, estas famílias portuguesas ciganas contam 37%.

Não se sabe quantas têm esta vida. Circulam nos distritos de Santarém, Portalegre, Évora, Beja, Faro. A relação entre sedentarização e itinerância não é linear. Períodos de paragem mais ou menos duradoura podem entremear com períodos de

deslocações sucessivas.

Apurou a antropóloga Alexandra Castro que cada família tem o seu percurso. Há caminhos que tomam por “questões de saúde ou familiares”, como um nascimento, um casamento, um tratamento ou uma morte. E caminhos que tomam “para garantir modos de sobrevivência”, como participar num mercado ou numa campanha agrícola. Os conflitos intra-étnicos também podem implicar deslocações. Isto não as impede de ter um “território de eleição”.

Natália, por exemplo, tem dificuldade em deslocar-se sozinha, com quatro crianças, na carroça puxada pelo Neco, que se vê lá ao fundo, sob uma árvore. Percorrer longas distâncias de carroça leva muito tempo. Há que parar para o animal e para as crianças descansarem. Por sua vontade, só se movia nas férias escolares. “De Verão, gosto de ir para Santarém. Já têm a escola acabada. Se eu tivesse uma casinha, nem saía. Deixava que viesse a escola outra vez. Agora, acabando a escola, eles podem-me mandar embora…”

Quantas famílias só não se fixam por pressão das autoridades locais? No livro que Alexandra Castro publicou em 2013 consta o resultado de um questionário que fez às câmaras municipais: metade das que responderam admitiram tomar medidas repressivas quando algum grupo de ciganos itinerantes acampava mais de 48 horas, através dos serviços de fiscalização ou em articulação com a GNR. Esta polícia também reconheceu que impedia a permanência (43,7%), mantinha vigilância (27,6%) ou advertia da ilegalidade do acto (5,5%).

“O facto de as forças municipais e policiais desalojarem repetidamente as famílias ciganas […] tem um impacto directo e gravoso”, alertou o investigador André Clareza Correia. Empurra-as “para processos de degradação cultural, para nichos económicos altamente precários, encerrando-as num ciclo no qual são afastadas das oportunidades de escolarização e de emprego”. Impede-as de “lutarem pela vida do mesmo modo que a maioria dos restantes portugueses”.

Dinâmicas familiares

Agostina tem observado esse “nomadismo em grande parte forçado em Montemor-o-Novo e em Évora — famílias que são sucessivamente expulsas pelas autoridades, famílias com filhos matriculados na escola e processos abertos na Segurança Social mas sem lugar fixo, grupos sem registo que procuram uma possibilidade de se fixar”.

Não é fácil chegar a estas famílias. Valeu-lhe Fernando Moital, professor e engenheiro agrónomo que há mais de 20 anos acompanhava várias famílias, cedendo até o seu endereço em Évora para que algumas pudessem receber correio enviado pela Segurança Social e outras entidades (o que nunca lhes serviu para requerer habitação social no município, que exige dois anos de permanência ininterrupta).

Teve o primeiro contacto na zona industrial de Montemor-o-Novo. Várias famílias tinham sido autorizadas a acampar ali durante a pandemia. As autoridades entendiam ser mais seguro para a saúde pública. Os residentes começaram a queixar-se do barulho, da acumulação de lixo, dos cheiros, dos bichos. E a atribuir-lhes pequenos furtos nas hortas. E veio a GNR. Viram-se forçadas a pegar nas trouxas, atrelar as carroças aos cavalos e zarpar.

Natália estava lá, na zona industrial, junto à família do marido. Desde o início deste ano, afastou-se com os filhos. Viúva há quatro anos, decidiu tirar o luto. Só tem 30 anos. Havia de andar a resto da vida assim?

“O luto é vivenciado de forma intensa pelos familiares mais próximos e de forma mais suave pelos familiares mais afastados, variando o tempo e o rigor em função do grau de parentesco”, escreveu a socióloga Maria José Casa-Nova. Pode ir de toda a vida pelo marido ou por um filho até aos três meses por um avô ou um tio.

Os sogros aliviaram um pouco o luto. Ela não usa lenço na cabeça nem manto a cobrir os ombros, mas continua a vestir-se de preto da cabeça aos pés, tal como ele. Na tenda de lona, Manuela, de 58 anos, sentada num banco, João, de 63, de cócoras sobre o chão de palha, atento aos quatro cavalos à sombra.

Estão desde Janeiro acampados num terreno emprestado por um casal amigo, junto à Estrada Nacional n.º 2, que desce em direcção a Santiago do Escoural e a Casa Branca. Podem ficar aqui até ao final de Junho.

O prazo foi ditado pela saúde de um dos membros do grupo. Um dos filhos tem estado a fazer radioterapia no Hospital de Évora. Também se chama João. Conta 24 anos. Está acampado ao lado dos pais, a companheira de 18, e duas crianças pequenas.

Já tiveram “um barraco” em Casa Branca. “Quiseram fazer obras na estação de comboios. Desmancharam o barraco”, atira o marido. “Nunca mais agarrei casa”, lamenta Manuela. “Já mudaram o presidente. Nunca mais.”

Manuela e o marido costumam acampar em vários sítios do concelho. Acontece deslocarem-se para Alcáçovas, que já faz parte de Viana do Alentejo, onde têm familiares sedentarizados. Não sendo possível, Évora. Mas é com Montemor-o-Novo que se identificam.

“Era bom se o presidente da câmara desse um bocadinho de terreno para a gente fazer umas casas de zinco”, diz ela. Quando se

Manuela e o marido

(nas páginas anteriores) costumam acampar em vários sítios do concelho. João faz negócio de cavalos. Acontece deslocarem-se para Alcáçovas, que já faz parte de Viana do Alentejo, onde têm familiares sedentarizados. Não sendo possível, Évora. Mas é com Montemor-o-Novo que se identificam

pergunta se já foi à câmara, irrompe o marido: “Não fazem caso da gente.” Manuela anui. “Ao tempo que andam fazendo estradas e essas coisas. Podiam ter dito: ‘Está ali um bocado de terreno, olha faz lá uma casa.’”

A actividade a que se dedicam não os impediria de se fixarem. Mal o filho João tirou carta, compraram uma carrinha de caixa aberta para transportar os cavalos. Num instante, os leva a qualquer mercado ou feira. Os filhos costumam trabalhar na apanha da pêra e nas vindimas. “Vamos todos os anos”, diz João. “Na vindima já temos pertencer. Eles dão casas, comida, tudo.” Antes, havia mais trabalho. Por todo o lado, as máquinas vão substituindo os braços.

Sem pedidos na autarquia

A vereadora responsável pela Saúde e pela Acção Social, Sílvia Santos, não sabe quantas famílias nómadas acampam em Montemor-o-Novo. “Correm diferentes freguesias e vão para outros concelhos.”

Um estudo feito pela associação Terras Dentro com base numa amostra de 338 pessoas ciganas indica que 31% vivem em barracas, tendas ou contentores nos municípios de Alvito, Cuba, Montemor-o-Novo, Viana do Alentejo e Vidigueira. Tal como o estudo nacional, este não esclarece quantos estão sem pouso certo.

Sílvia Santos lembra-se de ter recebido Natália e Agostina. E de ter sugerido que a família acampasse num terreno camarário, junto a casas onde outras famílias ciganas foram realojadas. Não se recorda de lhe terem perguntado como poderia aceder a habitação social.

“Ela não se dirigiu, com certeza, aos serviços de acção social para fazer esse pedido de habitação social”, afiança. O nome dela não está na lista. Nem o dela nem o de Manuela e o marido, nem o de João e a mulher. “Acho que ela falou em ir para Évora…”

Através do gabinete de comunicação acede-se ao normativo do Programa Mor Solidário. Nas condições gerais de acesso, lê-se: “Ser residente, em regime de permanência ininterrupta, e estar comprovadamente recenseado no concelho de Montemor-o-Novo, por consulta dos cadernos eleitorais, há cinco ou mais anos (a atestar pela junta de freguesia)”.

Os estudos de Alexandra Castro enfatizam “como os processos de selecção para realojamento acabam por deixar estas famílias de fora”. Há um pingue-pongue entre territórios, que as coloca num limbo. É como se não pertencessem a lado algum. Quem acedeu a habitação social, forçou pertença —? ocupou casas ou infra-estruturas devolutas ou levantou barracas em terrenos públicos ou privados.

Em Montemor-o-Novo, ao que diz a vereadora, o regulamento está a ser revisto. Estão inscritas 49 famílias, três das quais ciganas, nenhuma nómada. A autarquia tem 30 casas, umas ocupadas, outras devolutas e em ruínas. A ideia é recuperar essas e comprar pelo menos outras dez para reabilitar e arrendar a famílias carenciadas.

No ano passado, o Alto Comissariado para as Migrações desafiou este e outros municípios vizinhos a formar um Grupo Intermunicipal do Alentejo Central para delinear um plano de integração das comunidades ciganas. A vereadora tem expectativa que daí possam sair estratégias de intervenção para resolver este e outros problemas. “Estamos a falar de direitos humanos.”

Degradação física

No Verão, a temperatura dentro da tenda pode atingir valores insuportáveis. E isso é o mais fácil. “O calor é a capa do pobre”, diz Manuela. “Há calor, procura-se uma sombra e faz-se um sombradozinho.” Pior mesmo é o Inverno. “O Inverno é perigoso. Dá para a gente morrer.”

Agostina nota a deterioração física que advém da vida na tenda e da falta de cuidados de saúde. “O impacto no corpo é terrível.” Não é só a esperança média de vida que é mais baixa. É a doença que é mais presente. Há a falta de dentes, as infecções de pele provocadas por picadas de pulgas e carraças, as queimaduras por exposição solar extrema, a desidratação causada pela falta de acesso a água.

O que distingue a vida destas famílias da dos primeiros ciganos a cruzar a fronteira portuguesa, pela Estremadura espanhola, há cinco séculos? O material da tenda? As panelas de alumínio? O fogão e o candeeiro a gás? Os telemóveis que carregam por favor na vizinhança? A carrinha de caixa aberta onde o João transporta os cavalos aos mercados? O rendimento social de inserção, que livra de andar na esmola? O acesso ao Serviço Nacional de Saúde?

Manuela nem quer crer que há quem pense que vivem assim por gosto. “Isto não é vivência nenhuma, diga lá! Uma casa é uma casa. Uma casa é um guarda-costas. Pode ir para um lado qualquer, sabe que vai dormir naquele sítio. O que é que a gente sabe?”

Organizar a vida em torno da impossibilidade de permanecer só lhe permite pensar o presente. Acorda, levanta-se, toma o pequeno-almoço, arruma todos os pertences. Têm de estar sempre preparados para, em caso de intervenção policial, arrumar as trouxas, atrelar a carroça e zarpar. “É a guarda. A guarda manda a gente embora.” Será que a nova estratégia da autarquia vai, por fim, ter em conta a sua existência e a dos seus?

Sociedade

pt-pt

2023-07-15T07:00:00.0000000Z

2023-07-15T07:00:00.0000000Z

https://ereader.publico.pt/article/281947432321805

Publico Comunicacao Social S.A.