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Uma base de dados que quer “marcar uma página na história da fotografia portuguesa”

O projecto Nervo é uma exposição no CPF (Porto) e um repositório digital de livros de fotografia editados em Portugal no século XXI

Daniel Dias

Nas paredes de uma sala não muito grande do Centro Português de Fotografia (CPF), no Porto, estão coladas várias palavras, iniciadas por todas as letras do alfabeto, excepto “k”, “w” e “y”. E nos móveis expositivos estão diversos livros de fotografia, cada um dos quais surge acompanhado de uma pequena ficha identificativa e também de algumas palavras-chave: “etiquetas” (do inglês tags) que procuram resumir o(s) seu(s) tema(s).

Esta é a exposição Nervo: Observatório do Fotolivro Português no Século XXI, inaugurada no passado sábado e que ficará patente no CPF até ao próximo dia 31 de Março. A forma como a sua disposição foi pensada vai ao encontro daquilo que existe num novo site que tem quase o mesmo nome que a mostra: Nervo — Observatório de Fotolivros Portugueses.

Juntando seis investigadores, entre os quais os líderes da equipa Ângela Ferreira (artista, curadora e co-fundadora do festival internacional de fotografia Encontros da Imagem, realizado anualmente em Braga) e o fotógrafo Rodrigo Peixoto (director da licenciatura em Fotografia na Universidade Lusófona de Lisboa, onde Ângela também lecciona), o projecto consiste numa base de dados que pretende ser um repositório abrangente de livros de fotografia editados em Portugal no século XXI, com informações básicas sobre as obras (autor, editora, ano de publicação, design gráfico, tipo de encadernação, etc.), sinopses e algumas fotografias de páginas selectas.

O momento em que o site e a exposição vêem a luz do dia é um momento embrionário, como Rodrigo Peixoto assume. “Estamos, neste momento, com cerca de 300 entradas na base de dados. Queremos ter muitas mais. Esperamos, até ao final da exposição, atingir o patamar onde desejávamos estar no arranque do projecto, isto é, ter 500 a 600 entradas. Mesmo quando chegarmos a esse ponto, haverá coisas em falta”, explica ao PÚBLICO. “Pedimos desde já desculpa a todos os fotógrafos que ainda não estão na base de dados”, acrescenta.

O caminho a percorrer é longo, mas a equipa já fala da iniciativa como algo que pode “marcar uma página importante na história da fotografia portuguesa”. Apoiado pela Universidade Lusófona, pelo CPF e pela DirecçãoGeral das Artes, o Nervo tem ainda como entidade parceira a Base de Dados de Livros de Fotografia, um inventário digital de livros de fotografia brasileiros que serviu de inspiração para os investigadores portugueses — que dizem não querer criar uma mera lista online de referências bibliográficas. “Vai ser um repositório acompanhado de produção de pensamento”, na forma de artigos e podcasts, diz Ângela Ferreira.

Sem uma política de gosto

Os fotolivros portugueses são, no seu essencial, “produzidos por pequenas editoras” especializadas, muitas vezes fundadas por pessoas que são elas próprias artistas (são os casos, por exemplo, da Pierre von Kleist, da XYZ, da Ghost, da Pierrot le Fou…), ou fruto de “edições de autor”, como aponta Rodrigo Peixoto, referindo que estas últimas começam a surgir com cada vez mais força neste nicho.

O docente identifica na comunidade de fotógrafos nacionais uma ética do it yourself (“faz tu mesmo”) muito forte. “É algo que, se quisermos, é quase herdado da cena punk, na música. Os fotolivros são uma respiração de uma comunidade de artistas que têm de produzir, precisam de o fazer. Se não têm muitos meios, trabalham com o que está ao seu dispor, apesar das limitações — e com elas”, afirma. “Há uma espécie de resistência nestas editoras e nestes fotógrafos, um gesto de sobrevivência”, complementa Ângela Ferreira.

A co-fundadora dos Encontros da Imagem diz que a decisão de inventariar apenas livros de fotografia editados no século XXI “não é no sentido de excluir”. “É no sentido de, balizando, nos ajudar nessa tarefa de fazer uma base de dados [completa].” A co-directora artística do projecto sugere ainda que, na viragem do milénio, começou a crescer em Portugal a vontade de “perceber o formato e a gramática própria do fotolivro”, num gesto inspirado pelos exemplos vindos de Espanha, França ou Bélgica.

O Instituto de História da Arte coordenou recentemente um projecto de investigação no âmbito do qual foi feito um mapeamento e estudo de livros de fotografia publicados em

Portugal após o 25 de Abril de 1974 e até 2015. Esse projecto resultou na elaboração de um livro, que será publicado ainda este ano, numa edição Ghost/Pierrot le Fou/Stet.

O núcleo duro do Nervo, que é maioritariamente composto por pessoas que têm trabalhado a fotografia na sua prática artística e/ou profissional, desejou que tanto o repositório digital como a exposição no CPF fossem marcados pela ausência de uma política de gosto, afirma Rodrigo Peixoto. “Se um livro cai na categoria ‘fotolivro’, entra na base de dados. É tão simples quanto isso”, refere, dizendo que a base de dados quer-se “inclusiva”.

A mostra reúne cerca de quatro dezenas de objectos — sobretudo livros de fotografia, mas também uma pequena amostra de publicações periódicas e coleccionáveis. O único título que não é do século XXI é Lisboa, Cidade Triste e Alegre, obra seminal de Manuel Costa Martins e Victor Palla, editada pela primeira vez em 1959. Está no centro da sala, numa mesa só para si, protegido por uma vitrine. Todos os restantes livros poderão ser folheados pelos visitantes. “Queríamos que houvesse toque, uma aproximação ao livro físico”, diz Ângela.

Contra a desmaterialização

A co-curadora da exposição conta que a mesma integra desde “obras clássicas” — categoria onde insere trabalhos de André Príncipe (You’re Living for Nothing Now), António Júlio Duarte (White Noise) e José Pedro Cortes (Things Here and Things Still to Come), por exemplo — a trabalhos mais experimentais, quer ao nível dos temas, quer ao nível dos formatos.

As palavras-chave são várias, desde “nostalgia” a “sexo”, passando por “Lisboa”, “território”, “decadência”... Ângela diz que há etiquetas que “podem ser realmente identificativas de um autor e do seu ritmo”. Fala-se, por exemplo, em Daniel Blaufuks, que surge na exposição com o livro 1+1=1, representando a palavra “memória”. “É a categoria dele, quase que não podia estar aqui qualquer outra pessoa”, refere Rodrigo Peixoto.

Ângela Ferreira sente que, se a velocidade da era digital por vezes atinge a fotografia, pondo em causa a “possibilidade de ela actuar e ser um meio de expressão artística com o seu tempo e o seu espaço”, “há, por outro lado, um clube de aficionados que procuram resistir a essa tendência”. Com o olhar lento que reclama, o fotolivro, argumenta, é “um manifesto contra a desmaterialização da fotografia”.

A mostra reúne cerca de quatro dezenas de objectos — sobretudo livros de fotografia, mas também uma pequena amostra de publicações periódicas e coleccionáveis

Cultura

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2023-11-20T08:00:00.0000000Z

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