Opinião
Sofia de Melo Araújo
Em Junho de 1943, Jean-Paul Sartre escreve e consegue levar a cena Les Mouches [As Moscas], uma peça original a partir da Oresteia, de Ésquilo, numa França ocupada pelos invasores nazis e sob a autorização obrigatória dos censores alemães. Nela, Orestes e Electra eliminam a mãe e o rei para vingar a morte do seu pai, Agamémnon, enquanto debatem liberdade, responsabilidade e justiça, com um pedagogo e um Júpiter infiltrado, numa cidade de Argos dominada pela culpa. A produção, dirigida por Charles Dullin no Théâtre de la Cité, ficará em cena aproximadamente um ano e, apesar de ser um fiasco de bilheteira, recebe atenção da crítica teatral — relutante quanto aos méritos dramáticos do texto, mas publicada sem aparente restrição.
A 4 de Julho, a sentença de Gaston Deryckeno no Cassandre vem acompanhada da ressalva: “Jean-Paul Sartre obviamente não tinha nada que o predestinasse a escrever para o teatro. Não esqueçamos que o autor de O Muro é acima de tudo um filósofo.” E, de facto, prevalecerá a ideia de se tratar da incursão de um filósofo no teatro. Poderá residir aí o livre-trânsito de ideias tão subversivas num contexto tão controlado?
Recordemos que a França de 1943 está pejada de elementos propagandísticos do “pai da Nação”, Pétain, desde cartazes onde o militar promete ficar com os franceses no momento difícil da ocupação, como fizera nos “dias gloriosos” da 1.ª Guerra Mundial, até contos infantis e mesmo puzzles sobre a vida do marechal. Um inesquecível cartaz da propaganda de Pétain, datado de 1941, coloca um casal jovem a combater três cães nomeados “Franco-Maçonaria”, “o Judeu” e de Gaulle, assim como uma cobra de três cabeças chamada “Mentira”, enquanto exigem “Laissez-nous tranquilles!”
Ora, é contra um discurso misto de arrependimento e culpabilização, que se resigna aos ocupantes, que o texto de Sartre sobe a palco. O próprio autor declara mais tarde, dias depois da libertação de Paris, recordando um episódio real da luta contra os ocupantes: “Por que fazer os gregos declamarem (...) se não para disfarçar os pensamentos sob um regime fascista? (...) O verdadeiro drama, aquele que eu gostaria de escrever, é o do terrorista [da Resistência] que, ao atacar alemães nas ruas, desencadeou a execução de cinquenta reféns” (Carrefour,9
de Set. de 1944).
Anos mais tarde, Lucien Goldmann desenvolverá “o problema da relação entre a livre escolha e o seu resultado efectivo (...)” Segundo o filósofo: “É possível — e a hipótese parece-me plausível — que a impossibilidade de resolver estes problemas no nível filosófico esteja na origem da insistência com que Sartre os criou e tratou enquanto criação literária.”
Ainda sob ocupação, Sartre marca o tom, que é também o da sua filosofia, em entrevista a Yvon Novy, publicada na Comoedia, a 24 de Abril de 1943: “Quis tratar a tragédia da liberdade, por oposição à tragédia da fatalidade.” Em Junho de 1947, já livre, escreve na Verger. Revue du Spectacle et des Lettres:
“Depois da nossa derrota em 1940, demasiados franceses cederam ao desânimo ou permitiram que o remorso se instalasse dentro deles. Escrevi Les Mouches e tentei mostrar que o remorso não era a atitude que os franceses deveriam escolher após o colapso do nosso país.” A 20 de Janeiro de 1951, explicita: “Estávamos em 1943 e Vichy queria levar-nos ao arrependimento e à vergonha. Ao escrever Les Mouches,
tentei contribuir com os meus únicos meios para erradicar um pouco esta doença do arrependimento, este abandono à vergonha, que nos era pedido” (La Croix).
Sartre refletirá ainda, em Un Théâtre de Situations (1973), sobre a forma como a sua Liberdade absoluta casa directamente com a tragédia clássica: “A tragédia é o espelho do Destino. Não me pareceu impossível escrever uma tragédia da liberdade, pois o antigo Fatum é apenas a liberdade devolvida. Orestes é livre para o crime e para além do crime.”
Se o ensejo fica claro, o facto de o enredo não ter feito soar alarmes demonstra a incompreensão e desconhecimento dos censores relativamente não apenas à tragédia clássica e ao herói esquiliano, mas até ao próprio
Público
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2023-09-22T07:00:00.0000000Z
2023-09-22T07:00:00.0000000Z
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