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valor literário da mosca na cultura ocidental. “Sou encantador de moscas, nas horas vagas”, diz, a dado passo, o Júpiter oculto da obra, onde lemos que “o medo e a consciência pesada exalam um aroma delicioso para as narinas dos deuses”.

A angustiante solidão dos heróis face à decisão existencial e liberdade absoluta convivem no texto com um motivo cultural perene. A mosca associada à morte e podridão, e aqui às Erínias clássicas, é o animal inútil e incómodo, mas ávido por sangue, que não faz ninho nem comunidade — desde Aristóteles, Plínio, o Velho, Leon Battista Alberti, Giovanni Lalli ou do derradeiro senhor das moscas, Belzebu, à assassina de Pirandello. Mas é também, sobretudo a partir do século XX, para lá do insulto encomiástico a Sócrates (“a mosca de Atenas”) ou da paródia de Luciano (II d.C), o símbolo do animal mal-amado, da fragilidade e até da condição humana, perante a irrelevância de a matar — Robert Musil e Katherine Mansfield são disso referências maiores.

As Moscas de Sartre, para lá do efeito em França, corre mundo e, em 1947, está em cena em Nova Iorque. Em 1948, o próprio Sartre é convidado para um debate na estreia em Berlim. Em Portugal, o autor é alvo constante de censura, quer directa quer aos que a ele se referem. Tal, surpreendentemente, não é o caso desta peça. É verdade que a censura falha, por vezes, com inacreditáveis episódios de cariz quase “épico”, como no caso do exemplar de Que Fazer?, que passou semanas na montra da Livraria Latina no Porto, ostentando o nome do autor Vladímir Ílitch Uliánov, nome civil de Lenine, sem qualquer intervenção.

Quando, em Setembro de 1962, o censor português major José de Sousa Chaves avalia As Moscas na edição da Presença aceita a circulação livre da obra. “Tolera-se”, aliás, como se lê no despacho do relatório de leitura. No relatório, chamará a atenção para algumas passagens, “entendendo, contudo, que não constituem razão de proibição [sic] do presente livro poder circular no País.” Já à mão, acrescenta ainda: “Não tem [ilegível, aspectos?] políticos.” É inegável que a obra não tem marcados ângulos comunistas, mas o que levou este major a ignorar todo o potencial subversivo do texto, quando, à data, era subdirector dos Serviços de Censura, com 34 anos de carreira censória no regime, sendo que há testemunho da sua correspondência directa com Américo Tomás, a quem tratava por “tu”, identificando-se como “o teu velho, grato e verdadeiro amigo”?

É verdade que autores como Gilbert Joseph negaram a intenção declarada de Sartre nesta obra, mas concordo com Simone de Beauvoir quando escreveu, em La Force de l’âge, que era impossível ignorar a sua implicação política, recordando que até o crítico alemão do Pariser Zeitung a apontou. Então como não o observou Sousa Chaves? Possivelmente, pelo mesmo (feliz) erro dos censores alemães: o cariz erudito dos referentes literários. Lá como cá, a incultura e insensibilidade dos censores, de mãos dadas com uma confiança excessiva no terror gerado, fizeram libertar Orestes. E Sartre. E cada leitor.

(CETAPS) Professora adjunta/ auxiliar em ESE-PPorto, FLUP e FLUC

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2023-09-22T07:00:00.0000000Z

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