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A missão impossível de “acabar com o Hamas”

Especialistas sublinham que o movimento islamista não é apenas um grupo militar, mas está enraizado na sociedade palestiniana

Maria João Guimarães

O Governo israelita prometeu “acabar com o Hamas” — e não demorou muito até que várias vozes questionassem se seria possível. A resposta curta de muitas: não era.

O Hamas não é apenas um movimento com um grupo armado que poderia ser vencido militarmente. Não é apenas uma autoridade que governa um território que poderia ser derrubada. É um movimento que surgiu no final dos anos 1980 com uma forte componente social, com uma rede de caridade ligada à sua ideologia de ter um Estado palestiniano com base no islão no território onde actualmente está Israel e os territórios palestinianos ocupados.

“Sou totalmente contra as palavras que temos ouvido de políticos ou generais a dizer ‘vamos erradicar o Hamas’, ou ‘vamos apagar o Hamas’”, diz por telefone ao PÚBLICO Michael Milshtein, responsável pelo Fórum de Estudos Palestinianos no Centro Moshe Dayan da Universidade de Telavive, e analista do Instituto para Política e Estratégia da Universidade Reichman. “O Hamas tem 100 mil membros em Gaza. Não se vai executar 100 mil pessoas em Gaza...”, afirma. “Não podemos ‘apagá-los’. A ideia irá existir e não só em Gaza mas também na Cisjordânia, em Jerusalém, noutros países do mundo árabe”, continua.

Aliás, depois do acordo em que reféns em seu poder têm sido libertados contra uma trégua em Gaza e a libertação de prisioneiros palestinianos de prisões israelitas, o Hamas terá aumentado a sua popularidade na Cisjordânia. “Há sinais disso, quase todas as noites há comemorações na Cisjordânia e Jerusalém Oriental, com a cor verde, a cor do Hamas, proeminente, e não se vê a Autoridade Palestiniana”, diz Milshtein.

Por isso, Milshtein é de opinião de que o importante para Israel é conseguir um golpe significativo contra o movimento, sublinhando: “Não conheço nenhum israelita que esteja disposto a aceitar que o Hamas exista como poder que governe Gaza”, já que “não podemos ter o tigre na sala ao lado”. Portanto, defende, Israel deveria ter o objectivo de enfraquecer o Hamas de modo a que não esteja no poder e que não tenha poder militar. “Este objectivo é difícil de atingir, mas penso que é mais realista do ponto de vista israelita. Há muitas ideias a circular que não são realistas.”

Milshtein é ainda de opinião de que Israel deve, “talvez depois da guerra”, matar os líderes do Hamas no estrangeiro (Ismail Haniyeh e Khaled Meshaal, por exemplo, que vivem no Qatar), “tal como fez em 1972”, depois do ataque do Setembro Negro que acabou com a morte de 11 atletas olímpicos israelitas em Munique. O facto de essa promessa ter já sido feita pelo primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, merece ao analista o comentário de que “talvez não tenha sido muito esperto” declará-lo publicamente.

Em algumas vezes em que Israel tentou dar um golpe decisivo contra o Hamas, os resultados não foram os esperados. Aconteceu com a tentativa de envenenar Khaled Meshaal na Jordânia em 1997 — os agentes da Mossad que lhe injectaram um veneno foram apanhados e Israel (ou melhor, o seu chefe de Governo que era então o próprio Benjamin Netanyahu) foi forçado não só a fornecer o antídoto como a libertar o fundador do movimento, o xeque Ahmed Yassin.

Em 2004, Israel ordenou o assassínio do xeque Yassin. Mouin Rabbani, analista do Institute For Palestine Studies (com sede em Beirute), ironizava, numa publicação na rede social X (antigo Twitter) como nesse ano o “rocket mais poderoso do Hamas mal conseguia percorrer a minha sala” — na altura, os projécteis eram dirigidos sobretudo aos colonatos no interior da Faixa de Gaza (antes da sua retirada, em 2005) e às comunidades mais perto, com a cidade de Sderot, a cerca de um quilómetro da barreira entre a Faixa de Gaza e Israel, a ser a mais atingida. Hoje alguns têm capacidade de chegar a Telavive, a cerca de 60 quilómetros do território palestiniano.

Dois anos depois da morte do xeque Yassin, o movimento decidia pela primeira vez participar nas eleições para a Autoridade Palestiniana, apesar de sempre ter sido contra os Acordos de Oslo que a criaram e da solução de dois Estados neles prevista. E ganhou, no que foi o início de uma cadeia de dominós a cair que culminou com uma luta em que o Hamas ficou no poder na Faixa de Gaza e a Fatah na Cisjordânia.

Por outro lado, a estratégia que Israel cunhou com o termo “cortar a relva”, com rondas de violência em que levava a cabo ataques para diminuir consideravelmente as capacidades militares do Hamas até ao conflito seguinte, também não resultou.

Para o analista e historiador Tareq Baconi, autor de Hamas Contained: The Rise and Pacification of Palestinian Resistance, de 2018 (não foi possível entrevistar Baconi para este artigo), tudo isto é prova de que não há saída militar, e que uma solução tem de ser política. “Se o Hamas for dizimado, a luta palestiniana anticolonial irá continuar sob outra forma e com outra ideologia”, defendeu Baconi numa entrevista à New Yorker.

“Israel pode bem conseguir alguns escalpes importantes e proclamar o fim da história”, continua, pelo seu lado, Mouin Rabbani, “mas o impacto organizacional será pequeno e temporário”.

Milshtein não concorda que um golpe suficientemente forte seja impossível. Mas para isso, diz, é preciso que Israel “complete a operação na Faixa de Gaza”, não só visando o Sul, e a liderança do Hamas que deverá estar em Khan Younis, uma cidade de 300 mil habitantes, onde uma operação será “muito problemática”.

E depois é preciso que tenha um plano “para o dia seguinte”, para que um vazio do Hamas não seja ocupado por elementos mais extremistas. Na sua opinião, Israel deveria fomentar uma autoridade de transição com base “em clãs locais, figuras importantes da Fatah, responsáveis de organizações não-governamentais, pessoas da academia”. E mesmo aí, “e mesmo sem ala militar, ter noção de que o Hamas vai tentar destruir isso, ser oposição”.

O Hamas tem 100 mil membros em Gaza. Não se vai executar 100 mil pessoas...

Michael Milshtein Analista

Mundo Conflito No Médio Oriente

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2023-11-29T08:00:00.0000000Z

2023-11-29T08:00:00.0000000Z

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