Público Edição Digital

O presente e o futuro do rock português confluem no Alentejo

Nove anos depois da fundação da promotora Pointlist e do primeiro Black Bass, o festival saltou as muralhas de Évora e chegou a Portalegre. Entre sexta e domingo, sucederam-se 15 concertos nestas duas cidades

Luís Filipe Rodrigues

Era difícil contar o número de pessoas no estrado da SOIR JAA (Sociedade Operária de Instrução e Recreio Joaquim António de Aguiar), em Évora, por volta das 2h de domingo. Depois de uma hora de exorcismo póshardcore presidido pelos Hetta, no festival Black Bass, o mar de gente que dançava e se debatia na dianteira da sala tinha transbordado para o palco e inundado os elementos da banda. O vocalista Alexandre Domingues não resistia a atirar-se para os braços espásticos dos fãs. Pouco depois, chegava ao fim um daqueles concertos sobre os quais vão continuar a contarse histórias daqui a uns anos.

O sucesso dos Hetta é curioso. A sua música lembra o pós-hardcore e o screamo que se escutavam na viragem e no início deste século em casas ocupadas e pequenos ginásios de Lisboa e arredores, à margem do mainstream. Não obstante, actuam nas principais salas do país e são acarinhados pela cena indie nacional. Os mais cínicos associam esta aceitação aos círculos onde eles se movem. Apontam que o baixista Simão Simões toca com intérpretes de free-jazz e música improvisada e que, tal como o baterista João Portalegre, acompanhava a cantora indie Maria Reis (Pega Monstro) ao vivo; ou que o EP Headlights, de 2022, foi gravado por Leonardo Bindilatti e Miguel Abras, colegas de Maria na Cafetra.

Mesmo assim, o que aconteceu na SOIR JAA, na madrugada de sábado para domingo, durante o Black Bass foi especial — até para quem já viu dois ou três concertos deles em 2023. O som estava perfeito, o calor que se sentia na sala contribuía para uma atmosfera tensa e febril, com o público agitado e cativo, Alex Domingues cantava, dançava e surfava sobre o público como se a sua vida dependesse disso.

O espírito do Barreiro Rocks

O espectáculo dos Hetta, no domingo, foi apenas uma página de uma história mais longa, que começou a ser contada há nove anos. Inspirados pelo trabalho da editora e promotora portuense Lovers & Lollypops, João Modas e Tiago Alexandrino formaram a produtora Pointlist, em Évora, em 2014. “Começámos por organizar e agenciar eventos pontuais, mas foi demasiado óbvio, muito cedo, que podíamos fazer um evento maior, com mais bandas, e nasceu este festival.”

Ao início, o Black Bass era apelidado Évora Psych Fest, mas ao fim de poucas edições passou a ser apenas Évora Fest. Na oitava edição, que começou às 18h00 desta sextafeira, no Club Lounge, em Portalegre, e só acabou 15 concertos mais tarde, na SOIR JAA, em Évora, às 04h30 de domingo, caiu também a palavra “Évora”.

Há várias explicações para estas mudanças. Por um lado, com o fim do Barreiro Rocks, fez sentido abrir o festival a outros géneros e estéticas. “Era um festival de referência para nós”, assume o fundador da Pointlist. “O Barreiro Rocks tinha uma linguagem que para nós fazia todo o sentido e partilhava também parte do do primeiro disco sobem após cada aparição. O indie rock de Os Passos em Volta é um bom ponto de comparação com o que fazem ao vivo, mas as suas canções têm uma rudeza e raiva que faltavam aos pioneiros da Cafetra. Seguiram-se os regressados 800 Gondomar, sebastiânica banda de garage-punk do Norte.

Um concerto memorável

As portas da SOIR JAA abriram às 16h de sábado, se bem que as actuações só começaram perto das 17h30. Quando subiram ao palco, Os Overdoses perceberam que havia um problema com a caixa de ritmos. O concerto estava em risco de não acontecer, até que Ricardo Ramos (The Dirty Coal Train), no Black Bass enquanto espectador, subiu para o palco e começou a tocar bateria. As condições não foram as ideais, porém deu para perceber ao que soam: rock and roll à antiga, com atitude punk e a discografia dos Velvets bem estudada. Seguiram-se os espanhóis Enamorados, punk-pop de corte clássico (mais Buzzcocks, menos Blink-182), que nos conquistaram mal tocaram os primeiros três acordes. Mereciam ter tocado mais tarde e para mais gente.

O concerto dos Travo, o primeiro da noite, coincidiu com o final do jantar. Começou-se então pelos Unsafe Space Garden, banda vimaranense de pop psicadélica, a lembrar os melhores Flaming Lips. Sorrisos na plateia, a noite a começar bem. E melhor ficou quando subiram ao palco os Lord Friday the 13th, filhos do Texas com um vocalista desavergonhadamente queer.

O que se seguiu, a partir da meianoite, foi um bom sumário do estado da nação rock portuguesa em 2023. Primeiro, ouviu-se o indie rock perfeitamente ensaiado e com tudo no sítio dos Cave Story; depois os Hetta, a darem o concerto mais memorável do festival e um dos melhores do ano; a seguir os Sunflowers, cujo álbum A Strange Feeling Of Existential Angst despontou na Primavera. Por fim, chegaram os MȾQUIɂȾ, outro dos fenómenos indie do ano, com fama ganha ao vivo. Nos seus concertos, o krautrock vira música de dança, os corpos sacodem-se e espantam maus espíritos, o suor corre. Em palco e na plateia.

Quando o festival terminou, perto das 04h30, não era o único com um sorriso estampado na cara.

Cultura Festival Black Bass Já Chega A Duas Cidade

pt-pt

2023-11-20T08:00:00.0000000Z

2023-11-20T08:00:00.0000000Z

https://ereader.publico.pt/article/281865828208450

Publico