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Em tempos de raiva e medo, Makaya McCraven aponta ao belo

Baterista, compositor, produtor e um dos pontas-de-lança da Anthem, apresenta na Casa da Música e no CCB In These Times, disco de um certo jazz de câmara

Gonçalo Frota

Makaya McCraven trabalhou em In These Times durante cerca de dez anos. Um longo período em torno da ideia de “trabalhar tempos musicais estranhos e complexos, de uma forma que fossem fáceis de digerir e pudessem chegar a um público amplo”, explica ao PÚBLICO. E foi assim porque, à medida que o seu nome se foi afirmando na cena de Chicago e ganhando uma justa reputação enquanto um dos mais estimulantes criadores a trabalhar na área do jazz, pensando o ritmo a pedir de um imaginário talvez mais próximo do hip-hop, o reconhecimento conquistado por álbuns como In the Moment (2015) e Universal Beings

(2018) foi empurrando In These Times

para o fundo da gaveta. “Esses projectos estavam sempre a intrometerse na minha oportunidade de finalizar este álbum”, desabafa, agora que conseguiu finalmente pôr cobro a esse distendido tempo de gestação. Por outro lado, sempre que regressava às composições para o disco, percebia que estas iam sendo transformadas por todas essas outras gravações que se chegavam à frente e ganhavam um protagonismo mais imediato.

“Quando fiz o In the Moment”, relata o músico norte-americano dias antes de se estrear em Portugal em dose dupla — a 19 de Novembro na Casa da Música (Porto), a 20 no Centro Cultural de Belém (Lisboa, em concerto do Misty Fest) —, “isso tomou conta da minha carreira e então fiquei conhecido por editar e ‘recortar’ improvisações, por fazer beats, mas continuava a compor e a trabalhar nesta música”. Aliás, quem assistia aos concertos de McCraven relativos a In the Moment e Universal Beings contactava já, sem o saber, com primeiras versões dos temas de In These Times, enquanto o músico continuava a sua contínua busca por lhes encontrar uma forma final. Não é, por isso, coincidência que este álbum de 2023 se aproxime, em muitos momentos, de uma certa ideia de jazz de câmara que McCraven explorava em já Universal Beings, pintando com secção de cordas as suas composições. “De início, não tinha qualquer intenção de usar cordas” em In These Times, conta, “mas durante a digressão do Universal Beings comecei a tocar mais com ensembles maiores e com cordas, e depois fez-me sentido prolongar esse movimento para estas composições em que já trabalhava há tanto tempo”.

Calma e tranquilidade

Alguns dos temas, compostos de modo bem tradicional ao piano, foram testados ao longo dos anos em trios, quartetos, quintetos, septetos, com orquestra e a solo, até que acabaram por repousar nas versões que Makaya McCraven fixou em estúdio de acordo com o seu processo muito particular. “Muitas das gravações que se escutam no disco”, explica o músico, “vêm do concerto no Walker Arts Center, em 2019, ou da actuação no Symphony Center Chicago, em Janeiro de 2020, numa altura em que já tinha começado a fazer arranjos para a banda e quarteto de cordas”. Depois, seguindo a sua metodologia habitual, McCraven fechou-se em estúdio, editou essas gravações, acrescentou e retirou elementos, fez colagens, alterou estruturas, introduziu partes novas e agitou tudo até acabar com um objecto final totalmente diferente. Ao gravar os concertos, interessava-lhe sobretudo captar “um espírito” que pode emergir dentro de uma sala de

“Quando fiz o In the Moment, isso tomou conta da minha carreira e fiquei conhecido por editar e ‘recortar’ improvisações, mas continuava a compor e trabalhar nesta música”

“Como oiço muita agressividade e sinto uma energia muito tensa na música, senti, ao fazer o disco, que queria apontar a algo belo. Talvez as pessoas precisem disso”

espectáculos, mas que não pode ser “acrescentado depois do facto”, em estúdio.

Aquilo que mais o surpreendeu, no entanto, foi o tom de calma e tranquilidade que tomou conta do disco. Até porque, ao sentir que havia muitos olhos a pesar sobre si, pensou em fazer um álbum “mais directo, com beats, talvez mais comercial, com cantores e canções”. Mas depois os temas foramlhe implorando que o caminho fosse mais orquestral e de câmara, levando-o a pensar no sentido duplo que o título do álbum sugeria. Se havia uma primeira lógica, mais literal, que se prendia com os tempos musicais complexos dos temas, McCraven começou a pensar cada vez mais na época de “muita escuridão, muito medo e muita raiva” que atravessamos. “E como oiço muita agressividade e sinto uma energia muito tensa na música, senti, ao fazer o disco, que queria apontar a algo belo. Talvez as pessoas precisem disso.”

Já os Beatles faziam

Quando Makaya McCraven iniciou a sua carreira no jazz, na transição dos anos 1990 para os 2000, foi avisado com frequência de que um disco de jazz tinha de “ser puro, não se podia fazer as coisas assim ou assado”. Ou seja, diziam-lhe que, apesar de ter crescido a escutar hip-hop e música electrónica nas mesmas colunas que lhe mostravam John Coltrane ou Miles Davis, e de desde a adolescência frequentar estúdios onde a mãe (Agnes Zsigmondi, cantora de música tradicional húngara) gravava os seus projectos, interessando-se por todos os recursos da produção, cortar ou acrescentar instrumentos a uma sessão e fazer overdubs (dobragem de instrumentos), tudo era tomado como heresia. “Não posso acreditar que tenhas feito isso, é uma loucura!”, lembra-se de ouvir quando partilhava as suas liberdades enquanto baterista que era também produtor. McCraven respondia: “Mas os Beatles já faziam isto desde sempre, porque é que não posso fazê-lo também ao tocar jazz?” Se toda a gente estava autorizada a explorar as ferramentas do estúdio a nível criativo, não era por trabalhar a partir de uma linguagem jazzística que o músico via nisso qualquer impedimento.

E para alguém que, aos 15 anos, ficara impressionado ao ver o engenheiro de som que trabalhava na gravação de um projecto da sua mãe “usar a mesma de mistura como se fosse um instrumento”, descreve ao PÚBLICO, “construindo um solo a partir de três takes diferentes”, essa

era uma regra inútil e anacrónica. Ao passar depois pelos ensinamentos de King Tubby e Lee “Scratch” Perry, que “criaram toda uma estética dub a partir da mesa de mistura”, e ao perceber que a sua banda de hip-hop na adolescência nunca conseguiria atingir o som dos temas que se construíam sobre sequenciadores, samples e um precioso trabalho dos DJ, a chegada dos muitos softwares disponíveis para trabalhar ritmos lançaram-no depois numa experimentação desenfreada. Até que se mudou para Chicago, numa altura em que “queria melhorar a fazer beats” e começou “a frequentar todas as noites de produtores numa série de espaços diferentes”, e se espantou com o conhecimento enciclopédico de DJ que “sabiam muito mais de discos de jazz do que as pessoas que apareciam [a vê-lo tocar] nos clubes de jazz”. “Isso foi uma epifania”, confessa.

A cada nova descoberta, convencia-se de que, afinal, não era o jazz que estava envelhecido, como lhe garantiam de início. O problema era a dificuldade em aceitar que o jazz podia ser mais do que uma mera repetição do passado. Depois de, em Chicago, contribuir para a afirmação da editora International Anthem, esse é, cada vez mais, o caminho de Makaya McCraven.

Cultura Estreia Ao Vivo Em Portugal, Em Dois Conce

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2023-11-19T08:00:00.0000000Z

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