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A espada de D. Dinis foi desenterrada: “É de uma importância imensa”

Desaparecida há quase sete séculos e descoberta em 2020, espada de monarca foi agora retirada do túmulo, no mosteiro de Odivelas, e vai ser estudada

Nicolau Ferreira

As palmas ouviram-se no Mosteiro de São Dinis e São Bernardo em Odivelas: a espada do rei tinha acabado de ser transportada, incólume, a várias mãos. Um alívio. Qual rei? D. Dinis, nascido em 1261, coroado em 1279 e falecido em 1325. A seu pedido, o monarca foi sepultado naquele mesmo mosteiro, num túmulo de pedra, com a espada. Descoberto em 2020, durante o projecto de restauração do túmulo de D. Dinis e o seu estudo forense, levado a cabo pela DirecçãoGeral do Património Cultural (DGPC), não havia qualquer referência prévia à existência do objecto. Agora, a espada vai poder ser analisada, estudada e conservada.

“É de uma importância imensa”, diz Maria Antónia Amaral com entusiasmo, referindo-se à peça, momentos antes do culminar da tarde de ontem. A arqueóloga é co-directora do projecto, juntamente com Rita Jerónimo, subdirectora da DGPC. “São raríssimas as espadas régias. Há pouquíssimas no contexto europeu e no contexto português. Sobretudo encontradas in situ. Há algumas espadas que estão associadas a reis, como a de D. João I, mas não temos a certeza absoluta. Aqui temos. O rei foi inumado com a espada. Isto é de uma importância incrível. Depois, porque a espada está datada. Depois, porque é uma peça valiosíssima e única em termos da história da arte, da história, da arqueologia, da conservação e do restauro. E porque é a espada do rei, que é o símbolo máximo do poder militar”, explica ao PÚBLICO Maria Antónia Amaral, também directora do Castelo de São Jorge.

Desaparecida há quase sete séculos, a espada é feita de ferro, tem um punho de prata com aplicações de esmalte de várias cores que o ornamentam, e uma bainha de madeira que poderá estar revestida com couro. “Perante a antiguidade, a preservação da espada é incrível”, refere a arqueóloga. Ao todo, o objecto mede cerca de um metro de comprimento. “A espada em si é mais pequena. Poderá ter uns 86, 87 centímetros. Estas medidas são todas provisórias.”

No entanto, não foi possível observar directamente a arma por completo, já que grande parte da espada tinha levado um facing. Ou seja, estava enrolada num material específico para proteger e manter a sua integridade. Quando o PÚBLICO entrou na pequena sala onde estava o túmulo e a equipa de profissionais da DGPC à sua volta, já estava tudo preparado para o transporte da espada de dentro do túmulo para um suporte onde ela iria ser colocada.

Para olhar para o interior do túmulo, foi necessário subir a um banco. Lá dentro, restava apenas um manto de D. Dinis, alguns objectos dispersos, algum entulho e a espada, incluindo uma ponteira daquela arma. A maior parte do espólio e os vestígios mortais de D. Dinis já foram retirados, num processo longo de exumação e estudo.

Outros objectos no túmulo

O projecto arrancou em 2016, com o objectivo de restauro do túmulo de D. Dinis — muito danificado durante o terramoto de 1755 (a abóbada da igreja abateu-se sobre o sarcófago) e alvo de várias intervenções posteriores. A DGPC e a Câmara Municipal Odivelas reuniram-se então num esforço para dignificar o túmulo de um dos reis mais importantes da história de Portugal. Mas os trabalhos acabaram por se transformar num estudo científico forense, pluridisciplinar — o primeiro a envolver um monarca português.

Em 2006, tinha havido uma primeira tentativa para se estudar os vestígios mortais de D. Afonso Henriques. Mas no dia em que estava para ser aberto o túmulo do primeiro rei de Portugal, na igreja do Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, a então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, proibiu o avanço dos trabalhos porque não tinha sido informada do projecto.

Com D. Dinis, esse não foi um problema. Dentro do túmulo, além das ossadas e do espólio, foi encontrado gesso, tijolo, madeira, insectos, plantas, cordas e até um jornal, avança um documento sobre o processo disponibilizado pela DGPC. O jornal está associado à abertura do túmulo em 1938, pela já extinta Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, que na altura estudou os vestígios.

“Havia um bocado de entulho. Não era dignificante”, refere Maria Antónia Amaral. Em 2020, surge a espada. “É normal o rei ser inumado com todos os símbolos. Mas não estávamos à espera.” A ponteira da espada foi o primeiro pedaço a ser encontrado, o que levou à suspeita da existência da espada. Nas fotografias que a arqueóloga tem no computador, é possível observar a sequência da espada a ser desembrulhada, entre tecido e entulho, como se estivéssemos numa pequena sondagem arqueológica. Primeiro, revelou-se o punho, depois o cinto enrolado na base da espada, feito de um tecido com aplicações de esmalte, e por fim a espada protegida pela bainha. “É uma espada muito boa, de excelente qualidade estética, de decoração”, diz-nos a especialista.

O passo seguinte foi proteger a parte mais frágil do objecto medieval. Para isso, a seguir ao cinto e até à ponde

ta da espada, envolveu-se primeiro papel japonês com uma goma que adere à superfície e depois uma gaze. Este procedimento, o facing, serviu para estabilizar o objecto e permitir que ele fosse removido, e foi realizado dentro do túmulo sem deslocar a espada. Por baixo da espada, foi ainda introduzida uma película transparente rígida que serviu para transportar o objecto. Foi assim que encontrámos a espada, no fundo do túmulo de D. Dinis, pronta para ser resgatada.

Depois, os jornalistas tiveram de sair da pequena sala para as seis técnicas da DGPC poderem fazer o transporte do objecto em sossego. As palmas seguiram-se. Quando saíram da sala, as profissionais não esconderam o alívio. “Já está. Está impecável”, ouve-se dizer. A equipa que está a tratar da exumação e vai analisar a espada é composta por especialistas em conservação, em têxteis, no metal e esmalte, em pedra e madeira.

A diversidade de peritos permite multiplicar as descobertas possíveis a partir de um único objecto. “Estes estudos são os mais avançados que há neste tipo de espólio. Não conheço outro projecto científico que tenha toda esta parafernália de investigadores”, afirma Maria Antónia Amaral. “Há um manancial de informação que se pode retirar deste objecto.”

Além do estudo de cada componente da espada, é importante identificar a sua função. “Pela quantidade de decoração que tem, muito dificilmente seria levada a combate”, explica Maria Antónia Amaral. A maior probabilidade é ter sido uma espada de aparato.

Além da pesquisa científica, o objecto será alvo de conservação. Este é o processo que se inicia a partir de agora. Consoante o que se descobrir, a espada poderá voltar para o túmulo, ser guardada noutro local ou ir para um museu. Ainda não se sabe, tal como ainda não se sabe quando é que toda a produção científica deste projecto será apresentada. “Temos de esperar estes resultados todos. Há peças que só agora é que temos”, justifica a arqueóloga. A pandemia foi um factor de atraso. Apesar disso, Maria Antónia Amaral não tem dúvidas sobre a importância do que tem nas mãos: “O estudo desta espada vai revolucionar o estudo do armamento militar português.”

Ciência E Ambiente Arqueologia E História De Portu

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2022-10-25T07:00:00.0000000Z

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