Público Edição Digital

Escrever com o sangue

Perseguia a escrita como expressão de sensualidade. Possessão foi um sucesso no mundo da língua inglesa

Isabel Lucas

A escritora britânica A.S. Byatt, vencedora do Booker em 1990 com o romance Possessão, morreu na quinta-feira, em Londres, aos 87 anos, informou a sua editora, Chatto & Windus, do grupo Penguin Random House.

Na vida literária de A. S. Byatt há um antes e depois desse livro, Possessão, um longo romance, pastiche de poesia, cartas e história detectivesca à volta de livros e de literatura. Antes A.S. Byatt era uma crítica literária temida por ser olhada como alguém que exercia o seu profundo conhecimento académico nos romances e contos que escrevia, quase o devaneio da grande intelectual. Depois, reconheceram-lhe imaginação, humor, capacidade de envolver o leitor, domínio invulgar da linguagem e tudo sem ceder a facilitismos, continuando a convocar os velhos mestres, como Coleridge, Carlyle, Shakespeare, Robert Browning ou Dante. Escreveu Possessão em 1990, ganhou com ele o Man Booker Prize e, com esse romance experimentalista, conseguiu o feito de ser um sucesso de vendas, pelo menos no mundo da língua inglesa.

Ainda depois de Possessão,a escrita saiu-lhe com mais facilidade e passou a ser amplamente considerada um dos nomes mais inventivos e sólidos, alguém inevitavelmente a seguir, ao mesmo tempo que mantinha um, por vezes, feroz olho crítico sobre o que os outros escreviam. Essa espécie de respeito ou conquista de respeito no mundo onde se movia valeu-lhe o título de Dame em 1999.

Dame Antonia Susan Duffy Drabble, que adoptou literalmente o sobrenome do primeiro marido e se deu a conhecer como A.S. Byatt, gostava de recorrer a uma ideia de Wordsworth para falar da sua relação física com o acto de escrever. A ideia de sentir através do coração. “Eu acho que escrevo com o sangue que me corre até à ponta dos dedos, e é um acto muito sensual”, disse numa entrevista à Paris Review, distinguindo, dessa forma, o processo de escrever ficção da tarefa de escrever crítica ou artigos jornalísticos. “Jamais conseguiria aprender a escrever o que considero uma verdadeira escrita com o corta-e-cola do computador, porque tenho de ter à minha frente toda a página que escrevi, como uma peça de tricot. No entanto, o meu trabalho jornalístico é feito no computador com o contar das palavras.”

A vida de A.S. Byatt foi marcada pela morte do filho, Charles, atropelado aos 11 anos. Durante uns tempos não escreveu. Quando voltou, a ironia veio com ela, mais dura. Chegou a dizer que a ironia ou o humor não estavam desligados da capacidade de sobreviver à dor. Muitos anos depois escreveu um conto sobre esse luto. E pensou se conseguiria voltar a escrever ficção.

“Se de repente me apercebesse de que nunca mais escreveria um romance, começaria um livro sobre o efeito das ideias de Napoleão no romance europeu. Ninguém o fez. E ele assombra Dostoievski, assombra Stendhal, Flaubert, ainda está a pairar em Proust. É o tema mais brilhante. Raskolnikov e Julien Sorel não seriam nada se não fossem ideias à volta do que era ser Napoleão.”

Antonia Susan Byatt nasceu em 24 de Agosto de 1936, em Sheêeld, no Yorkshire, Norte da Inglaterra. Estudou em Cambridge e depois em Oxford. Ensinou literatura inglesa e americana na Universidade de Londres, antes de se dedicar apenas à escrita, a partir de 1983, cerca de 20 anos após a publicação do primeiro romance, Shadow of a Sun

(1964). O seu primeiro livro fala de uma jovem mulher que cresceu sob o domínio paterno. O segundo, The Game, surgido em 1967, estuda a relação de atrito entre duas irmãs.

A entrega à escrita, em exclusivo, surge pouco depois de iniciar a tetralogia dedicada a uma família do Yorkshire: The Virgin in the Garden (1978), Still Life (1985), The Tower of Babel (1996) e The Whistling Woman

(2002). Em 1995, viu Angels and Insects adaptado para cinema por Philip Haas, o que aconteceria, sete anos mais tarde, a Possessão,

transposto para filme por Neil LaBute, com Gwyneth Paltrow e Aaron Eckhart como protagonistas.

Em 2009, voltou a seduzir o público com The Children’s Book, um dos romances seleccionados para o Booker, vencedor do James Tait Black Memorial. A colectânea de contos Medusa’s Ankles, publicada em 2021, é o seu último livro.

Cultura

pt-pt

2023-11-19T08:00:00.0000000Z

2023-11-19T08:00:00.0000000Z

https://ereader.publico.pt/article/281852943305035

Publico