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A Comissão Europeia tem medo dos lobos? Não parece ser caso para isso

Especialistas em vida selvagem criticam iniciativa da UE que pode levar à modificação do estatuto de protecção do lobo

Clara Barata

A Comissão Europeia abriu um processo de consulta, que termina hoje, para avaliar a alteração do estatuto de protecção dos lobos, cedendo aos grupos de pressão de agricultores e caçadores, que se queixam do impacto destes grandes carnívoros sobre o gado. Mas não só a população de lobos na Europa ainda não recuperou o suficiente para aliviar a protecção desta espécie, como a ciência desmente que a caça aos lobos faça diminuir o número de ataques ao gado, dizem especialistas em lobos e organizações ambientalistas europeias.

Foi a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que deu o mote. “A concentração de alcateias em algumas regiões da Europa tornou-se um perigo real para o gado e potencialmente para os seres humanos”, declarou, no lançamento desta avaliação, no início de Setembro.

O objectivo era recolher informação sobre a população de lobos para “decidir sobre uma proposta para modificar, onde for apropriado, o estatuto de protecção do lobo na União Europeia, actualizar o quadro legal e introduzir, onde for necessário, mais flexibilidade”. A espécie é protegida ao abrigo da directiva Habitats. A Comissão Europeia deu cerca de 20 dias para ter esta informação.

O problema começa logo à partida nas declarações de Von der Leyen. “A não ser que se aja de uma forma muito estúpida, o risco de ataques de lobos a humanos é mais pequeno do que as hipóteses de ganhar a lotaria”, afirmou Joachim Mergeay, da Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, especialista em conservação da biodiversidade, numa conferência de imprensa online organizada pela WWF UE (Fundo Mundial para a Natureza), Birdlife Europa e o Gabinete Ambiental Europeu.

Mas não é só isso. As populações de lobos na Europa não recuperaram o suficiente para aliviar a sua protecção. “Ter um estatuto de conservação favorável não é o limite máximo acima do qual se pode caçar com segurança; é a meta mínima para poder conservar a espécie a longo prazo”, explicou Joachim Mergeay.

Os cientistas baseiam a sua apreciação num relatório sobre o estado da população europeia de lobos, de 2022, para a Convenção de Berna sobre a Vida Selvagem na Europa. “A maior parte das populações ainda não chegou a um estado favorável. E não houve mudanças significativas desde então”, frisou Mergeay.

“Não há nenhuma revisão científica nova, não houve tempo para tal. Está--se a espalhar desinformação, e a desperdiçar dinheiro público”, considerou Barbara Herrero, da organização Birdlife para a Europa e Ásia Central, sublinhando o reduzido prazo dado pela Comissão para receber contributos e tomar uma decisão.

“Se a Comissão Europeia continuar a basear a política em provas científicas, não alterará o estatuto de protecção dos lobos”, frisou Mergeay.

O objectivo da Directiva Habitats é manter populações estáveis das espécies protegidas — e em 2025, há uma outra avaliação, que poderia ser uma oportunidade para pensar sobre a população de lobos europeia, disse Mergeay. Se liberalizarmos a caça ou abate de lobos quando a população não está estabilizada, “arriscamo-nos a ter uma política iô-iô”, avisou.

Dados e emoções

Barbara Herrero classificou esta acção da Comissão Europeia como um episódio da guerra cultural, entre valores conservadores e progressistas. E que, com o aproximar das eleições europeias, na Primavera de 2024, se agudiza na luta política.

“A natureza serve de bode expiatório. Já foi assim quando se discutiu a Lei de Restauro da Natureza no Parlamento Europeu”, recordou Herrero.

“Um lado apresentava dados palpáveis, outro medos e emoções”, disse. “Debatia-se ‘o que eu sinto e o que eu acho que deves sentir’”.

Em torno dos lobos há muitos medos ancestrais. “Não há provas científicas de que a caça ou abate reduza o conflito entre homens e lobos por causa do gado. A não ser que se parta para a erradicação total, mas isso não está de acordo com a política europeia”, afirmou Joachim Mergeay.

Coexistência

A chave da relação entre homens e lobos é a coexistência. “É preciso garantir que são postas em prática medidas de prevenção para afastar os lobos”, sublinhou Cristian-Remus Papp, especialista em gestão da vida selvagem da WWF da Roménia.

Evitar que os lobos ataquem o gado pode passar pelo uso de inteligência artificial para elaborar mapas de risco de ataques, por exemplo. Ou instalar cercas electrificadas, e ter cães pastores treinados para afastar os grandes carnívoros, sublinhou Papp.

Há resistência dos criadores a adoptar estas medidas “Todas as mudanças enfrentam resistência. Os criadores ficam relutantes no início, mas, quando vêem os benefícios, aceitam usar as medidas preventivas”, adiantou Cristian-Remus Papp.

“Pode acontecer que um lobo ultrapasse a cerca eléctrica”, disse Mergeay, confrontado com um caso recente, na Holanda, em que um lobo atacou um criador. “Mas o lobo levou um choque, estava desorientado, e o criador bloqueou-lhe a fuga. Não se espere que atacar um lobo não tenha resposta”, sublinhou.

“São grandes predadores, com grandes dentes, e ninguém deve aproximar-se. Isso vale para os caçadores, criadores de gado e também para os amantes da natureza”, avisou.

Risco de ataques de lobos a humanos é mais pequeno do que as hipóteses de ganhar a lotaria

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2023-09-22T07:00:00.0000000Z

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