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A China e o Ocidente: esperar para ganhar sem combater

José Pedro Teixeira Fernandes

1. No actual contexto mundial, marcado por inúmeras tensões geopolíticas, a deslocação de Xi Jinping aos EUA para participar na Cimeira da APEC (Asia-Pacific Economic Cooperation) em São Francisco e o encontro com o Presidente norte-americano foram um raro momento de diminuição dessas tensões. É bom para a paz e estabilidade mundiais que as duas maiores potências consigam dialogar sobre problemas bilaterais e globais e estabeleçam canais de comunicação militar entre si.

Todavia, a rivalidade sino-americana não desapareceu, nem vai desaparecer nos próximos tempos. Há razões profundas e estruturais para esta. A deslocação de Xi Jinping à cimeira da APEC tem de ser vista como parte da estratégia chinesa de afirmação no mundo. Há, desde logo, vantagens para a China em continuar a atrair investimento directo estrangeiro, particularmente em indústrias de tecnologia avançada, bem como manter aberto um mercado da importância dos EUA. São Francisco na Califórnia e a Cimeira da APEC, pela sua forte componente económica, são um local ideal para essa abordagem. Assim, manter canais de diálogo com o Governo norte-americano e atrair as multinacionais da tecnologia e outras serve o interesse da China, especialmente numa altura em que o ciclo de grande crescimento económico das últimas décadas parece esgotado.

2. Na política global do século XXI, o actual Presidente chinês simboliza a inversão de papéis entre a China e a Rússia face à segunda metade do século XX. Em 1985, Xi Jinping, inserido numa delegação agrícola chinesa, viajou para a América do Norte durante a presidência de Ronald Reagan. Na época, a sua visita, que o levou a conhecer várias partes do interior dos EUA, onde fez amizades no estado do Iowa, passou completamente despercebida.

Estávamos no mundo da Guerra Fria e o que contavam eram as superpotências (EUA e União Soviética). A China era vista como um país fechado e exótico, uma potência regional que, apesar do seu grande potencial, era largamente subdesenvolvida e tinha uma população muito pobre. Apesar da vontade de os governantes chineses desde os anos 1960 e 1970 (Mao Tsé-Tung) se afirmarem autonomamente no grande jogo da política mundial, a China não passava de um parceiro júnior da União Soviética, com relações próximas ou conflituantes com esta. Nesse mundo, a União Soviética (hoje Rússia) era o Estado que dividia a influência global com os EUA.

O contraste não podia ser maior com o mundo de hoje. Quer para amigos, quer para inimigos, a China é agora a potência que mais rivaliza com o poder dos EUA e surge como alternativa ao Ocidente. Ao mesmo tempo, a China aposta em criar a imagem de um Estado responsável e estabilizador do sistema internacional, de fábrica do mundo que aumenta o bem-estar global. Contrasta com a Rússia, que quase só produz commodities — combustíveis fósseis, cereais, etc. — e é vista por muitos como um perturbador belicoso e vingativo, pelo mau perder que agora mostrou da Guerra Fria, ao invadir a Ucrânia.

3. Mas não é só relativamente à Rússia que a China marca a sua diferença. Para o Governo chinês, a ausência de intervenções militares no exterior, comparativamente ao intervencionismo militar do Ocidente, é argumento irrefutável da sua ascensão pacífica. Prova também que é um Estado respeitador do Direito Internacional, da soberania dos outros Estados, que promove a cooperação e amizade no exterior e não procura a hegemonia.

Mas a realidade é mais complexa e matizada. No mundo do século XXI, ainda dominado pelo Ocidente, mas que a China percepciona em gradual retrocesso, esta vê grandes vantagens em não se desgastar em conflitos militares e aventuras intervencionistas. Com os EUA como potência global empenhada em preservar a sua hegemonia, e a terem de dividir-se em múltiplos conflitos, crises internacionais e guerras — algumas da sua própria escolha (Afeganistão e Iraque), outras mais por arrastamento das circunstâncias e alianças (Ucrânia e Médio Oriente) —, a perspectiva chinesa é de um duplo ganho.

Primeiro, um ganho que resulta do desgaste e progressiva erosão do Ocidente. Ocorre pelo excesso de

A China vê grandes vantagens em não se desgastar em conflitos militares e aventuras intervencionistas

envolvimento no mundo exterior, que atingirá, mais tarde ou mais cedo, um patamar acima das suas capacidades. Foi isso que aconteceu a outras grandes potências do passado, desde logo ao Império Britânico. Segundo, um ganho na opinião pública mundial. Com o centro do mundo económico a deslocar-se para a região da Ásia-Pacífico e a maioria da população mundial a habitar aí, a China sente que o seu poder de atracção (e o respeito pelo seu crescente poder militar) acabarão por permitir superar os EUA e Ocidente, contando para isso com a gradual ascensão do Sul Global.

4. Significa isto que a ascensão da

China será inteiramente pacífica? Esta é a questão crítica da política global do século XXI. É impossível dar-lhe uma resposta definitiva. Num Estado com uma cultura milenar como é a China, é tentador olhar para o grande clássico da estratégia, A Arte da Guerra de Sun Tzu, para racionalizar a actual forma chinesa de afirmação no mundo. A reflexão que encontramos no capítulo III, ponto 3, aponta para uma estratégia de vitória sem se envolver em guerras: “Obter uma centena de vitórias numa centena de batalhas não é o cúmulo da habilidade. Dominar o inimigo sem o combater, isso, sim, é o cúmulo da habilidade” (A Arte da Guerra, trad. port., Europa-América, 1993, 2.ª ed. p. 65).

Olhando para o mundo actual, o que vemos são guerras em diversos pontos, deste logo no Leste europeu e no Médio Oriente. O que observamos também é um Ocidente envolvido nesses conflitos, seja através de apoio generalizado à Ucrânia, seja através de um apoio mais selectivo, dado especialmente pelos EUA a Israel, seja pelas repercussões que tais guerras têm nos Estados ocidentais (vagas de refugiados, fracturas na sociedade e opinião pública, custos económicos elevados, etc.). A atitude ocidental contrasta com a não-intervenção chinesa e o não-fornecimento de material militar aos beligerantes (pelo menos abertamente). Todavia, a China coloca-se politicamente próxima do campo contrário ao Ocidente, prosseguindo uma espécie de “neutralidade antiocidental”. Ao mesmo tempo, apesar de exibir cada vez maior poder militar, com meios mais modernos e sofisticados e capacidade de projecção das suas forças — bem visível nas manobras regulares à volta da ilha Formosa (Taiwan) —, não se envolveu em conflitos militares desde 1979, na curta guerra que teve com o Vietname.

5. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia e a guerra Israel-Hamas são conflitos maiores do mundo contemporâneo, ou essencialmente conflitos regionais da área Euro-Mediterrânica, cuja importância é sobrestimada pelo Ocidente? Se esta última possibilidade for a categorizarão correcta, significa que estão a funcionar, na prática, como distracção e guerras de desgaste, favorecendo a estratégia da China de esperar para ganhar (e deixar que outros façam o papel de perturbador belicoso, como a Rússia, o Irão ou a Coreia do Norte, tirando partido disso). Todavia, só com distanciamento histórico será possível fazer uma leitura acima de dúvidas razoáveis. O que é claro nesta altura é que é a questão de Taiwan, pela enorme importância que a China lhe atribui — incluindo a pretensão de reunificar a ilha que não controla desde 1949 —, que levanta mais interrogações.

Em inícios de 2024 vamos ter um novo teste. Em Taiwan, a 13 de Janeiro, vão realizar-se eleições. Lai Ching-Te, o candidato pelo Partido Democrático Progressista (o partido da actual Presidente Tsai Ing-wen), e actual vice-Presidente de Taiwan, tem estado à frente nas intenções de voto. Todavia, para a China, representa a facção secessionista. Se o resultado eleitoral lhe for desfavorável, irá a China continuar a esperar para ganhar sem combater, ou estaremos a aproximar-nos perigosamente de um ponto de inversão da ascensão pacífica chinesa?

Investigador do IPRI-Nova — Universidade Nova de Lisboa

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2023-11-20T08:00:00.0000000Z

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