Público Edição Digital

Europa preparada para enfrentar Inverno com mais gás dos EUA e Noruega

Reservas de gás natural cheias, redução de consumo e compras conjuntas afastam cenário de crise no Inverno, mas a guerra no Médio Oriente pode desequilibrar o mercado global

Ana Brito

Um Inverno de 2022/2023 ameno, que permitiu conservar reservas de gás relevantes até ao final da estação, um plano de poupança de energia bem-sucedido e a diversificação de fornecedores fizeram com que a Europa tivesse alguma facilidade em preparar-se para a época fria que agora começa.

A redução global de consumo de gás de 19% entre Agosto de 2022 e Janeiro de 2023 tornou mais fácil a tarefa dos Estados-membros de voltar a encher os seus depósitos de gás ao longo do Verão: as reservas europeias encontram-se actualmente a 99,57% da capacidade, de acordo com a associação europeia de operadores de infra-estruturas de gás.

Por outro lado, o aumento da capacidade de recepção de gás natural liquefeito (GNL) em vários países, incluindo a Alemanha, que é a principal consumidora europeia, e o aumento do leque de fornecedores internacionais para substituir as importações russas, deixam os Estados-membros numa posição aparentemente confortável para enfrentar o Inverno 2023/2024.

“Este ano estamos a entrar no Inverno com perspectivas muito melhores para a nossa segurança de abastecimento: o nosso armazenamento de gás está quase cheio, os nossos fornecimentos são mais diversificados e as energias renováveis estão a desempenhar um papel mais proeminente no nosso cabaz energético”, afirmou o vice-presidente da Comissão Europeia, Maros Šefcovic, no final de Setembro, ao anunciar o terceiro aviso aos Estados-membros para se juntarem a uma nova ronda de compras conjuntas de gás natural.

Mas o responsável europeu também salientou que não é tempo de baixar a guarda: “A situação no mercado do gás continua difícil” e os europeus têm de se “manter vigilantes e continuar a comprar gás em conjunto para garantir fornecimentos estáveis e a preços acessíveis”.

Esse é o caminho para a Europa atravessar “este Inverno em segurança” e começar já “a preparar o próximo” — as ordens de compra agora colocadas são para entregas entre Dezembro de 2023 e Março de 2025.

A situação de crise energética espoletada ainda em Outubro de 2021, quando a Rússia começou a reduzir deliberadamente a quantidade de gás disponível para os clientes europeus provocando a subida de preços, que se agravou depois com a invasão da Ucrânia e o corte quase total das exportações por gasoduto, em 2022, poderá vir a repetir-se, ainda que com o epicentro noutro ponto do globo.

A incógnita

Um artigo recente do think tank Bruegel salienta que a guerra entre Israel e o Hamas pode vir a afectar a dinâmica do mercado global de gás e que a dimensão do problema irá depender daquela que vier a ser a duração da guerra.

A análise de Agata Loskot-Strachota e Simone Tagliapietra salienta que o conflito iniciado após os ataques do Hamas a 7 de Outubro começou por ter efeitos no abastecimento interno de Israel (com a suspensão temporária das operações nos principais projectos de exploração e gasodutos devido a riscos de segurança). Mas estas restrições, ao reduzirem as exportações dos campos offshore israelitas para o Egipto e Jordânia, poderão acabar por limitar a quantidade de GNL que chega à Europa.

“Se se prolongar [a guerra], o encerramento do [campo] Tamar e do [gasoduto] EMG reduzirá de forma mais duradoura não só os fornecimentos a Israel, mas também as exportações para o Egipto”, afectando a capacidade deste país de satisfazer as necessidades internas de gás e obrigando-o a reduzir as exportações de GNL “para a Turquia e vários países da União Europeia”, descrevem os investigadores.

Um cenário de instabilidade generalizada e prolongada naquela região que afectasse os projectos de cooperação energética entre Israel, Egipto e Líbano e, por conseguinte, as suas capacidades exportadoras, seria “um revés” para a Europa e para a Itália em particular. A Itália é o segundo Estado-membro com maior consumo de gás, a seguir à Alemanha, e as suas empresas “estão a investir em infraestruturas de produção e exportação no Mediterrâneo Oriental como parte da estratégia de independência do gás russo”.

Se o conflito escalasse com um hipotético envolvimento iraniano, a ameaça seria ainda maior. Tal como com o petróleo, um quadro desta gravidade “poderia ter diversas implicações para o trânsito internacional de gás”, por exemplo aumentando os riscos de segurança dos navios metaneiros que cruzam o estreito de Ormuz (entre os golfos de Omã e Pérsico) ou do funcionamento dos gasodutos que trazem o gás do Norte de África para a Europa (como é o caso do gás argelino que chega à Península Ibérica).

Tudo isto são ingredientes para acrescentar “incerteza e volatilidade” a um mercado já de si restrito,

99% As reservas europeias encontram-se a 99,57% da capacidade, de acordo com a associação de operadores de infra-estruturas de gás

10% O Qatar já tem uma quota de 10,9% no fornecimento de gás à Alemanha

concluem os investigadores do Bruegel.

Qatar “solidário”

O crescimento da procura por parte dos mercados asiáticos — e em particular da China, dependendo do seu crescimento económico — é sempre um dos factores que podem desestabilizar a disponibilidade de gás a nível global, mas também as cotações nos mercados internacionais.

Maior procura também significa que se podem repetir situações como o desvio de cargas de GNL para países/empresas dispostos a pagar mais pelo combustível, como foi frequente no pico da crise, em 2022, criando vazios difíceis de suprir e aumentando a volatilidade dos preços.

Uma possibilidade que o ministro qatari da energia afastou por completo numa entrevista dada à CNN, no início deste mês. Saad Sherida al-Kaabi explicou que os contratos das empresas qataris com contrapartes europeias têm cláusulas que permitem desviar o gás, mas que “há um compromisso de não o fazer, mesmo que houvesse um ganho financeiro, por uma questão de solidariedade com a situação que se vive na Europa”.

O ministro também disse que o Qatar continua empenhado em celebrar um acordo de fornecimento de longo prazo com a Alemanha, o que poderia vir a reforçar ainda mais a posição deste país no mix de fornecedores europeus de GNL, onde já têm uma quota de 10,9%.

Segundo os dados estatísticos europeus mais recentes sobre as importações de produtos energéticos, no segundo trimestre, os Estados Unidos continuavam “a ser de longe os maiores fornecedores europeus”, representando 46,4% do total das importações de GNL até Junho, seguidos pela Rússia (que ainda tem 12,4% do total e exporta para a Península Ibérica, por exemplo), pelo Qatar (10,9%), Argélia (9,9%) e Nigéria (5,1%).

A Noruega e Omã passaram também a ser exportadores importantes, com posições de 3,3% e 2,9%, respectivamente, indicou o Eurostat.

Quanto ao gás de gasoduto, a descida da posição russa para 13,8% do total (menos 14,5 pontos percentuais face ao segundo trimestre de 2022) foi compensada pelo reforço do papel da Noruega, que se tornou na “maior fornecedora de gás da UE”, com 44,3% do total, seguida do Reino Unido (17,8%) e Argélia (16,5%). Mas, talvez pelo facto de as reservas europeias não estarem vazias no final do Inverno e por haver um plano generalizado de poupança energética (que contempla uma meta voluntária de redução em 15% do consumo de gás dos Estados-membros e que estará em vigor até Março de 2024), as quantidades de gás natural importadas no segundo trimestre caíram 17% em termos homólogos.

Economia Fornecimento De Energia

pt-pt

2023-11-19T08:00:00.0000000Z

2023-11-19T08:00:00.0000000Z

https://ereader.publico.pt/article/281801403697483

Publico