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Do “Brexit” à China, da Líbia à Síria: os elefantes na mala do “diplomata” Cameron Experiência e contactos do

António Saraiva Lima

No álbum das fotografias mais famosas do período em que David Cameron chefiou o Governo britânico (2010-2016), há uma icónica, tirada em Outubro de 2015, que mostra o antigo primeiro-ministro britânico e Xi Jinping, sorridentes e descontraídos, num típico pub inglês, a provar uma cerveja local, durante uma visita do (ainda) Presidente chinês ao Reino Unido.

Era o tempo da “era dourada” das relações com a República Popular da China, expressão enunciada pelo próprio Cameron e pelo seu ministro das Finanças, George Osborne, que assumiam como objectivo estratégico fazer do gigante asiático o segundo maior parceiro comercial do Reino Unido, atrás dos Estados Unidos, no prazo de uma década.

Em Novembro do ano passado — menos de uma década depois, portanto —, no seu primeiro grande discurso sobre política externa, Rishi Sunak, o actual primeiro-ministro britânico, declarava que a

China representa um “desafio sistémico” aos “valores e interesses” do país. E, afastando a “ideia ingénua” de que as trocas comerciais poderiam originar reformas em Pequim, anunciava o fim da “era dourada” nas relações sino-britânicas.

Nos dias que correm, à boleia da competição económica e geopolítica entre China e Ocidente, da posição ambígua chinesa sobre a invasão russa da Ucrânia, da sua interferência política e securitária em Hong Kong (antiga colónia britânica), dos abusos de direitos humanos e religiosos atribuídos ao Partido Comunista Chinês (PCC) em Xinjiang ou das ambições territoriais de Xi no mar do Sul da China, em Taiwan ou noutros pontos estratégicos do Indo-Pacífico, é provável que as relações entre Pequim e Londres se encontrem num dos seus piores momentos de sempre.

Que o mundo mudou muito desde que Cameron bebeu uma pint e partilhou um prato de fish and chips com Xi no The Plough at Cadsden, em Buckinghamshire, é uma evidência. E nem é preciso olhar para a China ou para a Ásia, ou sequer para o que está a acontecer na Ucrânia, em Israel e em Gaza; basta espreitar para o lado de cá do canal da Mancha.

Porque foi nas relações com a sua vizinhança que se deu o choque geopolítico mais importante das últimas décadas no Reino Unido: a saída da União Europeia, consumada em Janeiro de 2020, o derradeiro capítulo de um processo político iniciado, precisamente, quando o antigo primeiroministro convocou (e perdeu) um referendo para apaziguar a ala eurocéptica do Partido Conservador.

Experiência e “poder de fogo”

Não obstante, seja por causa da China, do “Brexit” ou do Médio Oriente, falar sobre o legado de David Cameron na política externa britânica voltou a ser relevante a partir do momento em que o antigo primeiroministro tory suspendeu a reforma e, numa decisão surpreendente, aceitou o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido que Sunak lhe ofereceu.

“Embora tenha estado afastado da política da linha da frente nos últimos sete anos, espero que a minha experiência — como líder conservador, durante 11 anos, e como primeiroministro, durante seis — me ajude a auxiliar o primeiro-ministro a enfrentar estes desafios vitais”, foram as primeiras palavras do novo secretary of State for Foreign, Commonwealth and Development Affairs.

É difícil contra-argumentar. Não terão existido ministros dos Negócios Estrangeiros britânicos com tanta experiência, traquejo ou contactos na arena internacional como Cameron — nem entre os seis ministros que ocuparam a pasta desde o referendo do “Brexit” (Philip Hammond, Boris Johnson, Jeremy Hunt, Dominic Raab, Liz Truss e James Cleverly); nem desde que o também antigo primeiro-ministro Alec Douglas-Home aceitou o mesmo cargo, há mais de 50 anos.

Dentro do ministério, quase todos concordam. “Trazer alguém com este poder de fogo e esta experiência para liderar a nossa diplomacia e o nosso trabalho para o desenvolvimento só nos pode ajudar a alcançar o impacto que desejamos”, congratulou-se um membro sénior do Foreign Office, em declarações à BBC. “A maioria dos seus homólogos ficará satisfeita e impressionada por ver alguém com o calibre [de Cameron]

do outro lado da mesa.”

Enumerando e analisando ao pormenor, algumas das principais decisões que o antigo primeiro-ministro tomou no campo internacional, assim como as suas consequências, não há como negar que não faltarão elefantes nas várias salas que Cameron vier a frequentar por esse mundo fora. Elefantes que, pela natureza do cargo que ocupa, o novo chefe da diplomacia britânica terá de levar na mala, seja para Bruxelas, para Pequim, seja para Washington, para Telavive ou para Kiev.

“O antigo primeiro-ministro vai trazer qualidades indiscutíveis à equipa de topo [do Governo] e às relações externas do Reino Unido. Mas existe a preocupação de que elas possam ser suplantadas pelo legado controverso que ele também traz consigo”, atesta a investigadora Bronwen Maddox.

Um remainer para a diplomacia brexiteer

“No topo da lista de desvantagens está o ‘Brexit’”, concretiza a directora e chefe-executiva do Chatham House, num artigo publicado no site do think tank, sediado em Londres, dedicado a assuntos internacionais.

No seu livro de memórias, For The Record (Harper Collins, 2019), Cameron garante que não se arrepende de ter convocado o referendo do “Brexit”, mas assume que não há um dia em que não pense no processo e nas consequências nefastas que ele causou, tanto ao Partido Conservador como à política britânica.

Do ponto de vista interno, o remainer Cameron, que assumiu a derrota e se demitiu depois do referendo, terá dificuldades em convencer a ala radical do partido e o eleitorado brexiteer de que é o homem certo para representar um Reino Unido pós“Brexit”, que agora se diz desamarrado das teias europeias e com capacidade para defender os seus interesses em todo o mundo.

Fora de portas e particularmente do ponto de vista dos 27, ainda que a moderação ideológica e o europeísmo lhe possam ser apontados como trunfos nas relações com a UE, o facto de Cameron ter esticado a corda até onde pôde para travar uma maior integração e para tentar renegociar os termos da participação do Reino Unido na organização

Cameron terá dificuldades em convencer a ala radical do Partido Conservador

comunitária não foi esquecido em muitas capitais europeias. “As pessoas lembram-se dele como o homem que provocou o ‘Brexit’ para salvar o seu próprio Governo”, diz uma fonte europeia ao Guardian. “Aos olhos europeus, acho que está muito desacreditado e que ninguém estará interessado em negociar com ele — algo que, obviamente, terão de fazer.”

Desafio chinês

No que toca à China, como já foi referido, David Cameron terá como principal missão deixar cair rapidamente o rótulo do político “amigo” de Xi e abraçar a estratégia de contestação ao Governo chinês, cada vez mais influente no universo tory, depois de vários políticos do partido, como o ex-ministro e ex-líder Iain Duncan Smith, terem sido adicionados à lista de sancionados por Pequim, por terem denunciado o “genocídio” de uigures em Xinjiang.

“A China é outro potencial problema para Cameron. Ele ainda é intimamente associado à política da ‘era dourada’ de cortejo à China, que é hoje vista como ingénua e pouco visionária por gente no seu partido”, sublinha Maddox, sinalizando que a política de relacionamento com Pequim foi uma das que “mudaram mais drasticamente” desde que Cameron saiu do Governo, com Londres a deixar de olhar para o gigante asiático como uma “oportunidade económica” e a passar a encará-lo como um “desafio estratégico”.

O Reino Unido é hoje um dos países da linha da frente, por exemplo, da oposição à entrada da gigante tecnológica chinesa Huawei na rede 5G na Europa e faz parte da parceria de segurança AUKUS, com EUA e Austrália, uma iniciativa militar vista como uma ferramenta de contenção da China na região alargada do IndoPacífico, que tem como objectivo primordial fornecer submarinos movidos a energia nuclear à Marinha australiana até 2030.

O trabalho de Cameron como lobbyista, no pós-Governo, também lhe poderá trazer algumas pressões indesejadas nas relações com a China. O agora ministro fez parte de um projecto (falhado) para criar um fundo de investimento China-Reino Unido de mil milhões de libras (1,4 mil milhões de euros), no qual ele seria vice-presidente, e que mereceu críticas da comissão parlamentar da Câmara de Comuns responsável pelos temas relacionados com os serviços secretos e segurança; e, segundo a BBC, também recebeu dinheiro para fazer discursos de apoio ao investimento para a construção de um novo porto no Sri Lanka, em grande parte financiado pela China.

Entre as decisões mais controversas que David Cameron tomou enquanto primeiro-ministro, destaca-se o enorme apoio que deu à intervenção militar da NATO na Líbia, em 2011, para derrubar o regime de Muammar Kadhafi.

O objectivo foi cumprido e poucos se esquecem das imagens de Setembro desse ano em Bengasi, onde o antigo primeiro-ministro britânico e o então Presidente francês, Nicolas Sarkozy, foram recebidos em festa pela multidão, tratados como verdadeiros heróis da libertação do país do Norte de África.

Mais de uma década depois, porém, a Líbia é um Estado falhado. Palco de uma disputa de poder sem fim à vista, está no centro de uma das maiores crises humanitárias e de refugiados da nossa era e é um dos principais redutos da actividade paramilitar do grupo de mercenários russo Wagner.

Em 2016, a comissão parlamentar de Assuntos Externos concluiu que a intervenção na Líbia careceu de análise e de informação mais detalhada e adequada dos serviços secretos, teve apenas como objectivo levar a cabo uma mudança de regime e ignorou a “responsabilidade moral” de contribuição para a reconstrução do país.

Barack Obama, antigo Presidente dos EUA, também lamentou que o Governo britânico não tenha dedicado mais tempo e fundos no pós-Kadhafi. Ainda hoje, Cameron assume, ainda assim, ter “orgulho” no papel que o Reino Unido desempenhou para derrubar o regime.

Do Norte de África para o Médio Oriente, o legado e as actividades lobbyistas de Cameron também lhe podem trazer dificuldades acrescidas no exercício do novo cargo.

Uma das grandes derrotas políticas do antigo governante tory envolveu a Síria. Em 2013, depois de o seu Governo ter anunciado que iria dar autorização à Força Aérea britânica para bombardear as forças leais ao Presidente Bashar al-Assad, após denúncias de que estas tinham levado a cabo ataques com armas químicas contra os inimigos do regime da guerra civil síria, a maioria dos deputados da Câmara dos Comuns, incluindo muitos conservadores, chumbou a moção, apresentada por Cameron para o efeito. A votação no Parlamento britânico foi uma humilhação para Cameron.

A Rússia, aliada da Síria, agradeceu-lhe e o facto de o Reino Unido não se ter envolvido mais no conflito foi visto como decisivo para a vitória final de Bashar al-Assad que, segundo o Guardian, chegou a fazer pouco do político britânico publicamente.

O “mais pró-Israel de sempre”?

Com grande parte do mundo de olhos virados para o conflito entre Israel e o Hamas, existe muita curiosidade para saber que papel vai ser desempenhado por Cameron, até porque a posição do Governo de Sunak, e até do Partido Trabalhista, na oposição — que ajudou recentemente a chumbar uma moção que exigia um cessar-fogo imediato em Gaza — é de apoio total aos esforços militares israelitas na Faixa de Gaza.

Mesmo tendo sido descrito, em 2015, pelo jornal israelita Haaretz como o “primeiro-ministro britânico mais pró-Israel de sempre”, a imprensa do Reino Unido recorda que, cinco anos antes, Cameron pediu ao Governo israelita para fazer mais pela protecção da população civil na Faixa de Gaza, enclave que, aquando de uma visita à Turquia, catalogou como uma “prisão gigante a céu aberto”.

Mundo Reino Unido

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2023-11-20T08:00:00.0000000Z

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