Governo polaco não vai enviar mais armas para a Ucrânia
Partido no poder está pressionado pela extrema-direita nas zonas rurais devido à importação de cereais ucranianos
António Saraiva Lima Jornalista
Brecha na solidariedade europeia com a Ucrânia ou tacticismo eleitoral? O Governo da Polónia rejeitou a primeira hipótese, mas teve mais dificuldades em refutar a segunda e, com isso, não foi capaz de desfazer as dúvidas em nenhuma delas. “É claro que respeitamos todos os problemas deles [ucranianos]”, explicou o primeiroministro, Mateusz Morawiecki, “[mas os interesses dos nossos agricultores são mais importantes.”
Em causa está a decisão do Governo polaco, do partido ultraconservador Lei e Justiça (PiS), anunciada na quarta-feira, de não enviar mais armas do que aquelas que foram objecto de contrato para ajudar o seu vizinho a defender-se da Federação Russa, justificando a medida com a necessidade de a Polónia repor o seu próprio stock de armamento e adquirir “armas mais modernas”.
Para muitos analistas e para os críticos do PiS, a relação entre esta decisão, de natureza militar, e os “interesses” dos agricultores polacos é óbvia: a três semanas das eleições legislativas, segundo as sondagens, o PiS está a perder terreno para o partido de direita radical Confederação, particularmente nas zonas rurais, e, por isso, precisa de mostrar a esse eleitorado, descontente com o impacto do mecanismo europeu de importação de cereais ucranianos no comércio agrícola local polaco, que também lhes pode dar voz.
De acordo com o agregador de sondagens do Politico sobre as intenções de voto dos polacos para o próximo dia 15 de Outubro, o PiS lidera com 38%, e a Plataforma Cívica, do ex-presidente do Conselho Europeu Donald Tusk, tem 29%. Com estas percentagens, o partido no poder ficaria longe da maioria absoluta e seria obrigado a negociar com a Confederação, que agrega, por esta altura, 10%.
Slawomir Mentzen, líder da Confederação, tem acusado a Ucrânia de levar a cabo um “aproveitamento implacável” da “simpatia polaca” e de a ameaçar constantemente com uma “guerra comercial” por causa da questão dos cereais.
“Trata-se de uma escalada na campanha eleitoral [por parte do PiS]”, diz à Reuters Marek Swierczynski, analista do think tank Polityka Insight, que, sublinha, tem como objectivo “ganhar mais uma pequena percentagem do eleitorado anti-Ucrânia da Polónia”.
Teatro de Moscovo
Nos termos da decisão da Comissão Europeia de liberalizar o comércio de cereais e outros bens alimentares da Ucrânia, em resposta ao bloqueio russo dos portos ucranianos do mar Negro, foram abolidas as tarifas de importação e criados “corredores de solidariedade” para o transporte da produção agrícola ucraniana através da União Europeia.
Os governos de cinco Estadosmembros denunciaram, no entanto, uma situação de superabundância de cereais nos seus mercados, justificando a incapacidade logística de distribuição com a descida dos preços dos bens agrícolas nacionais, e, em Abril, a Polónia, a Hungria e a Eslováquia decidiram proibir unilateralmente a importação de cereais e de outros produtos alimentares da Ucrânia, mais baratos, para proteger os produtores locais. Bruxelas reagiu, em Maio, aceitando a “excepcionalidade” desses três países, da Roménia e da Bulgária, mas, na passada sexta-feira, voltou a levantar a proibição, argumentando que as distorções do mercado de cereais já estavam ultrapassadas. Ainda assim, polacos, húngaros e eslovacos anunciaram que iriam manter as suas próprias restrições aos cereais ucranianos. E Volodymyr Zelensky não gostou.
“É alarmante ver como alguns, na Europa, desempenham o papel da solidariedade num teatro político, fazendo um thriller com os cereais. Podem achar que estão a desempenhar o seu próprio papel, mas, na
realidade, estão a ajudar a preparar o palco para um actor de Moscovo”, lamentou o Presidente ucraniano no seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, na terça-feira.
As palavras de Zelensky não caíram bem junto das autoridades na Polónia que, sublinhando o acolhimento de milhões de refugiados ucranianos que atravessaram a fronteira e o facto de o país ter dispensado parte do seu armamento para o esforço de guerra na Ucrânia, responderam com firmeza.
O embaixador ucraniano em Varsóvia foi convocado para dar explicações, Morawiecki admitiu que as relações bilaterais atravessam um momento “difícil” e o Presidente do país, Andrzej Duda, depois de cancelar um encontro com Zelensky em Nova Iorque — justificando-se com uma situação de incompatibilidade de agendas — comparou mesmo a Ucrânia como uma “pessoa que se está a afogar” e que pode arrastar consigo quem a está a tentar salvar.
“Nunca concordei tanto com Duda como depois destas suas declarações. Tudo o que ele disse está correcto”, reagiu Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia.
Interesses e avisos
Primeiro-ministro polaco (à direita) sublinhou apoio constante do seu país à Ucrânia
De acordo com o ministro responsável pelos bens do Estado, o anúncio de Morawiecki sobre a indisponibilidade polaca para ceder novas armas à Ucrânia — que teve de ser esclarecido ontem por um porta-voz do Governo, já que o primeiro-ministro parecia ter dado a entender que haveria uma suspensão imediata no fornecimento — tem como principal motivo o “interesse nacional”.
Esse argumento também foi usado por Morawiecki para justificar a posição do Governo na chamada “guerra dos cereais”. “Deixo um aviso às autoridades ucranianas: se quiserem intensificar o conflito desta forma, iremos acrescentar produtos adicionais à lista de proibição de importações para a Polónia. As autoridades ucranianas não compreendem o grau de desestabilização da indústria agrícola polaca. Estamos a proteger os agricultores polacos.”
1. O Governo de Varsóvia acaba de anunciar a suspensão do apoio militar à Ucrânia, numa decisão que só pode ter uma explicação imediata: há eleições na Polónia a 15 de Outubro e o partido que detém o poder parece estar disposto a tudo para não perder um único voto. O Partido da Lei e da Justiça (PiS), nacionalista, ultraconservador e razoavelmente eurocéptico, governa a Polónia desde 2015. Foi, desde a primeira hora, um dos mais vocais defensores do apoio militar ocidental à Ucrânia. Tinha sido e continua a ser uma das vozes mais críticas da política de “apaziguamento” em relação a Moscovo, seguida pela França e pela Alemanha desde a anexação da Crimeia, em 2014. Recebeu milhares de refugiados ucranianos, desde a invasão russa, em Fevereiro de 2022. E, no entanto, bastou que as exportações de cereais ucranianos para o mercado europeu pudessem lesar os interesses dos agricultores polacos para inverter drasticamente a sua política de apoio a Kiev. Quando, na semana passada, a Comissão Europeia levantou o embargo às exportações de cereais ucranianos para o mercado europeu, Polónia, Hungria e Eslováquia anunciaram que não cumpririam a decisão de Bruxelas. O Governo de Kiev respondeu avisando que tencionava levar este bloqueio à Organização Mundial do Comércio.
2. É desnecessário explicar que um país que suporta uma brutal guerra de agressão há ano e meio, que vê diariamente o invasor destruir as suas cidades e matar os seus cidadãos, não se pode dar ao luxo de abdicar de uma das fontes de rendimento de que ainda dispõe. Mas nada disto impediu o primeiro-ministro polaco, Mateusz Morawiecki, de anunciar, numa entrevista a um canal privado de televisão polaco, que deixaria de “transferir armamento para a Ucrânia”, porque estão “agora a armar a Polónia com armas mais modernas”. Reafirmou a determinação do seu país para ajudar a Ucrânia a derrotar “a barbárie russa”. Mas não ao ponto de permitir que “os mercados polacos fossem desestabilizados pelas importações de cereais ucranianos”.
A entrevista foi imediatamente
Estas divisões alimentam a única ‘arma’ que resta a Putin para evitar uma derrota: o cansaço das democracias ocidentais
II Guerra na Polónia. É um argumento recorrente. O Governo polaco voltou recentemente a reclamar da Alemanha o pagamento de uma indemnização de 1,3 biliões de dólares pelas atrocidades cometidas durante a ocupação nazi. O assunto continua a ter eco entre a população e tem-se revelado útil eleitoralmente — o PiS acusa o líder do principal partido da oposição, Donald Tusk, de ser um “serventuário” da Alemanha e de Bruxelas.
As sondagens dão-lhe a vitória, ainda que longe da maioria absoluta, o que o pode obrigar a uma aliança com o partido de extrema-direita Confederação Liberdade e Independência (KON), que lhe disputa o voto dos agricultores e que o acusa de “subserviência” em relação à Ucrânia.
4. Estas são as razões imediatas. Há razões mais profundas. Não é por acaso que a Hungria e a Eslováquia se juntaram à Polónia para rejeitar as exportações ucranianas. O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, nunca escondeu a sua preferência por Vladimir Putin e nunca forneceu armas a Kiev. Foi, até agora, um caso excepcional na União Europeia. Na Eslováquia, haverá eleições intercalares no dia 30 de Setembro, que vão ser disputadas entre a actual coligação populista de direita que governa o país, e que nunca regateou o seu apoio à Ucrânia, e um partido populista de esquerda, dirigido por Robert Fico, confesso admirador de Orbán e de Moscovo. Fico vai à frente nas sondagens. Se ganhar, Putin ganha mais um potencial aliado.
A única coisa que pode justificar a presença do Governo polaco nesta coligação tripartida contra Kiev é a sua própria natureza nacionalista e ultraconservadora. Convém recordar que a maioria dos partidos nacionalistas ou de extrema-direita na União Europeia, incluindo na Europa Ocidental, não escondem a sua simpatia por Vladimir Putin e pela sua ideologia autoritária e ultraconservadora. De Marine Le Pen, em França, a Matteo Salvini, na Itália.
O problema é que estas divisões e contradições jogam a favor da propaganda russa, alimentando a única “arma” que resta a Putin para evitar uma derrota humilhante — o cansaço das democracias ocidentais e o desgaste das respectivas opiniões públicas. É por isso que o sinal que vem de Varsóvia é tão preocupante.
Guerra Na Ucrânia
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2023-09-22T07:00:00.0000000Z
2023-09-22T07:00:00.0000000Z
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