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Luana nunca foi a casa. Vive na enfermaria desde que nasceu — já lá vão quase dois anos

Luana nasceu com atresias, malformações raras e graves, e ainda problemas no coração e pulmões. Foi operada em Braga e no São João por uma equipa mista dos dois hospitais, uma colaboração “rara” no SNS

Sofia Neves Texto Nelson Garrido Fotografia

Esta enfermaria é o mundo todo de Luana. A bebé faz dois anos em Outubro e está internada no hospital de Braga desde que nasceu. Não dormiu uma única noite numa cama que não fosse de hospital, só viu a irmã gémea com quem partilhou o útero em chamadas de vídeo e fotografias e já passou por mais de dez cirurgias. E contam-se pelos dedos de uma mão as vezes em que saiu destas quatro paredes.

Há quase dois anos que as tardes da mãe, Margarida, começam da mesma forma. Sai do restaurante onde trabalha pouco depois do almoço e as horas até ao jantar são passadas junto à cama da filha. Enquanto pousa o casaco e a mochila no vestíbulo do hospital, já tenta ver Luana pela pequena janela da porta da enfermaria.

No interior, lava e desinfecta as mãos, ajusta a máscara e veste a bata verde com alguma pressa. Durante todo o processo, também não tira os olhos da cama da filha. As três enfermeiras que estão junto à bebé, ao verem a mãe, dizem muito alegres: “Olha a mãe, olha quem chegou.” Luana, deitada, arregala muito os olhos, sorri e abana as pernas e braços quando vê Margarida aproximar-se.

Nasceu com o coração do lado direito

A menina tem um peluche da Minnie aos pés da cama, uma fotografia da irmã gémea e do irmão mais novo — que tem apenas cinco meses — colada numa das traves da cama e um espelho de brincar à sua frente. Quando se vê no reflexo ri-se muito, a mãe e as enfermeiras partilham as gargalhadas, quase em coro. Os risos conseguem, por momentos, abafar o som dos constantes “pi pi pi” do pequeno ventilador que ajuda Luana a respirar. Está tão habituada aos tubos da traqueostomia — buraco que foi aberto na garganta para facilitar a entrada de ar nos pulmões — que este já nem atrapalha as brincadeiras.

Nasceu com duas atresias, malformações raras e graves que ocorreram durante a gestação. “O nosso tubo digestivo vai desde a boca até ao ânus. Se parte do tubo não existir, acontece uma atresia”, explica Jorge Correia Pinto, director do serviço de cirurgia pediátrica do hospital de Braga. No caso de Luana, havia uma interrupção deste canal, tanto no esófago como no duodeno. “A saliva, pura e simplesmente, não consegue passar desde a boca até ao intestino”, refere o médico. E o mesmo acontecia com o leite materno, por exemplo. A bebé não conseguia alimentar-se de uma forma “natural”.

No meio de tanta informação médica, é a mãe que faz a ponte com o resto da família e tenta trazer um pouco de casa para a enfermaria. “Durante estas horas tento brincar muito com ela, mostro vídeos dos irmãos e fazemos sempre videochamada com o pai e com os pais dele, que são de Lisboa. Apesar dos tubos, pego e brinco com ela à vontade. Tendo em conta tudo pelo que ela passou, a Luaninha está muito bem, é muito alegre”, conta Margarida.

Qualquer uma das malformações é invulgar, juntas são uma raridade. E Luana nasceu com ambas. Além das atresias, os médicos tinham outros problemas para resolver. A bebé foi também diagnosticada com dextrocardia — uma condição congénita rara em que a pessoa nasce com o coração do lado direito do corpo, em vez do esquerdo — e com hipoplasia pulmonar, que acontece quando o pulmão não tem o volume e a dimensão que devia ter.

“Foi difícil, inicialmente, contar a estes pais, que são muito jovens, que a Luana tinha todas estas malformações e explicar que havia um prognóstico reservado. Tentávamos dar alguma esperança, mas nunca podíamos deixar de ser claros para que percebessem todos os riscos dos procedimentos cirúrgicos. A Luana já passou muitas vezes por risco de vida em muitos dos procedimentos que fez”, diz a médica Andreia Felizes, que acompanha Luana desde o primeiro dia de vida e que fez parte da equipa que a operou no São João.

A situação de Luana era “desafiante” e o facto de ter nascido prematura tornou o tratamento, que começou logo no seu terceiro dia de vida, “particularmente exigente”. “É daqueles casos que nos lembramos quando temos insónias. Eu pensava ‘como é que vou resolver o problema da Luana?’”, recorda Jorge Correia Pinto.

Depois de várias intervenções no hospital de Braga, onde nasceu, Luana foi crescendo e ganhando mais resistência. Começavam a ficar reunidas as condições para ser operada ao “desafio maior”: as atresias. Mas os médicos viram-se perante mais um contratempo. Jorge Correia Pinto tinha experiência com um tipo de cirurgia que corrige a ligação no esófago, mas o hospital de Braga não possui um serviço de cuidados intensivos pediátricos. E Luana ia precisar de passar vários dias numa destas unidades depois da operação.

A questão foi alvo de muitas discussões, chamadas telefónicas e reuniões em videochamada e presenciais. “Tínhamos tentado reparar a atresia do esófago uma vez, quando a Luana nem um quilo tinha, mas sem sucesso. Foi uma cirurgia muito laboriosa e o facto de o coração estar à direita complicou tudo. Teve de ser interrompida várias vezes para haver estabilidade cardíaca e acabámos por não conseguir fazer a ligação do esófago”, diz Correia Pinto.

Luana acabou por ser operada no Hospital de São João, no Porto — que tem um serviço de cuidados intensivos pediátricos onde podia fazer o recobro —, por uma equipa especial e com instrumentos muito pequenos, adaptados ao tamanho da recém-nascida. Um grupo misto de Braga, com os médicos que acompanharam Luana desde que nasceu, e do Porto — um tipo de colaboração rara entre hospitais do Serviço Nacional de Saúde.

“Há vários tipos de abordagem para esta condição, mas nenhuma delas é a ideal. O professor Correia Pinto tinha experiência num tipo de abordagem, mas nós aqui nunca a tínhamos feito”, diz Miguel Campos, director do serviço de cirurgia pediátrica do São João. “Foi consensual que valia a pena, no mínimo, tentar. Como ele tinha uma experiência que nós não tínhamos, fizemos uma equipa cirúrgica mista dos dois hospitais. Já tínhamos colaborado noutras situações, mas nunca assim. Este tipo de colaboração não acontece muitas vezes.”

Parte da família

Depois de quase dois anos de internamento, todos no serviço de pediatria conhecem Luana (e vice-versa). Nas semanas em que esteve internada no São João, era até difícil conseguir

adormecer por não reconhecer os rostos que tinha à sua volta, algo que não sucede aqui. Além da mãe, tem três enfermeiras junto à sua cama a pedirem que mande beijinhos e diga adeus. “Onde está a mãe?”, pergunta uma delas, e Luana olha e aponta para Margarida. A bebé ainda não fala, mas parece entender tudo o que lhe dizem e palra muito.

“Quem convive quase todos os dias durante um ano com uma criança passa a vê-la quase como uma filha. Um internamento prolongado deste tipo marca obviamente a família, mas também marca muito a equipa”, diz o médico Jorge Correia Pinto.

Sempre que a situação clínica da bebé o permite, a equipa leva-a a dar alguns passeios no recinto do hospital. Hoje, por exemplo, vai lá fora ver o pôr-do-sol sem o ventilador, diz a mãe. “Aprendemos a viver um dia de cada vez, não podemos colocar datas ou previsões em nada.”

“SNS, meu querido SNS”

Em menos de dois anos, Luana já foi submetida a mais de dez cirurgias de várias especialidades, desde a cardiologia e cirurgia pediátrica até à otorrinolaringologia. A mais desafiante foi a operação à atresia do esófago, feita por fases, mas a bebé continua sob vigilância constante.

“O orgulho em nós é visível porque ultrapassámos um problema muito difícil. Havia muitos pareceres de médicos de outros países que diziam que esta não era a abordagem mais fácil. Sabíamos os riscos, mas acreditávamos que era possível. Este caso é único porque houve colaboração entre as duas equipas, uma ferramenta que usamos pouco e que aqui foi muito benéfica para a nossa doente. É por isso que eu digo que a Luana pode dizer ‘SNS, meu querido SNS’. Acho que é um caso que só deve prestigiar e aumentar o orgulho dos portugueses no nosso Serviço Nacional de Saúde”, diz Jorge Correia Pinto.

O director do serviço de cirurgia pediátrica do hospital de Braga diz que, além de estas colaborações serem “uma das mais-valias do SNS”, também podem ajudar a resolver vários dos problemas do sistema nacional de saúde e dos hospitais portugueses.

A operação de Luana acabou até por se tornar um momento de aprendizagem para os médicos do Porto, que nunca tinham visto esta cirurgia e que agora, quando for preciso, podem replicá-la. “Hoje, na saúde, o conhecimento só por si não chega. É preciso ter os meios, os recursos físicos e tecnológicos. Não podemos ter todos os equipamentos e todas as valências em todos hospitais, mas, se houver este tipo de colaboração, as coisas funcionam.”

Mas se o maior desafio foi ultrapassado, outros virão nos próximos meses. Além de ainda estar em parte dependente da ventilação mecânica para respirar, Luana ainda não consegue comer como era suposto. Para já, está a ser alimentada através da nutrição parentérica, um método de administração de nutrientes que é feito directamente na veia.

“Vai ser uma longa viagem até a ensinar a comer. Ela treinou-se muito bem para cuspir a saliva, agora vai ter de passar outro ano e meio a aprender a engoli-la e aos alimentos também. Quando beber leite ou comer sopa, a primeira reacção de defesa dela vai ser deitar cá para fora. Felizmente, a parte psicomotora da bebé não ficou muito afectada, o que é muito comum nos internamentos muito prolongados. Segundo a mãe, quando se compara com a gémea, a

Luana está bastante bem”, afirma Jorge Correia Pinto.

“Tremíamos com chamadas à noite”

Nos últimos meses, Margarida e Tiago (com 25 e 27 anos) precisaram de se adaptar ao facto de um dos seus três filhos estar a passar por um internamento prolongado. Mudaram de casa, para uma zona mais perto do hospital, e dividem-se diariamente entre o trabalho (Margarida é gerente de turno num restaurante, Tiago é jogador de futebol), os dois irmãos de Luana e as horas passadas no hospital. “Pediram-me, e eu quero, passar mais tempo cá para ajudar a Luana a desenvolverse. Ela é muito activa e precisa de gastar energia, mas a procura por creches e amas para os dois irmãos está difícil”, confessa Margarida.

Ainda agora, depois de meses desta rotina, Margarida passa os dias e noites com o coração nas mãos. “Nos primeiros tempos, tremíamos quando recebíamos chamadas durante a noite. Houve uma altura que cheguei cá e ela estava muito branca. Disseram-me que tinha acabado de ser reanimada e isso já aconteceu duas ou três vezes”, conta.

Andreia Felizes, que vai mostrando vídeos dos primeiros dias e meses de vida da bebé, recorda que foi difícil para o casal levar uma das filhas para casa (a irmã gémea) e não poder fazer o mesmo com Luana. “Houve uma fase muito prolongada entre as primeiras intervenções e esta intervenção do esófago em que tivemos de fazer uma gestão de expectativas porque os pais queriam, obviamente, ver a situação resolvida o mais rápido possível.”

Luana já está a fazer terapia da fala e em breve vai começar os treinos de deglutição. Se tudo correr bem na próxima operação, que já está marcada, Luana pode começar a “sonhar” em ir para casa. Margarida terá de aprender a funcionar com o pequeno ventilador que continuará a ajudar Luana a respirar, mas também a lidar com a alimentação da bebé, que será desafiante nos primeiros meses. “Ela já vai fazendo alguma medicação oral, de vez em quando damos soro fisiológico. No domingo passado, estive a tarde toda à volta dela, a ver se lhe dava leite materno, mas ela não bebeu. Temos de ter paciência. Nós, cirurgiões, tínhamos muita vontade de a ver a beber leite, mas é muito difícil para uma bebé que nunca comeu”, diz Andreia Felizes.

Enquanto não tem alta e não pode conhecer a sua casa e os dois irmãos, a bebé vai continuar internada no hospital de Braga, a aprender tudo o que desaprendeu nos primeiros dias de vida. Para já, esta enfermaria continuará a ser o mundo todo de Luana.

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