Ganhámos medo à rua e eles querem ajudar-nos a perdê-lo na ida para a escola
Vários projectos testam a confiança dos pais no percurso casa-escola. Porque tem de se perder medo à rua e dar mais autonomia às crianças
Abel Coentrão
Portugal definiu para esta década metas ambiciosas para a mobilidade sustentável, mas para lá do impacto no controle das emissões do andar a pé e de bicicleta no dia-a-dia , há um outro efeito positivo desta política pública fundada na Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa que é menos traduzível em números, mas ficou bem patente num conjunto de iniciativas realizadas em Portugal, nas últimas semanas: é urgente promover a recuperação da autonomia no acesso e uso do espaço público por parte das crianças – e, por arrasto, por todos os que foram excluídos da rua.
Num encontro intitulado “Ir para a escola com autonomia”, organizado esta semana pelo Instituto para a
Mobilidade e Transportes, o autor do livro Libertem as Crianças, Carlos Neto, insistiu numa das suas mensagens-chave: “Vivemos numa sociedade cheia de medo, medo do risco, medo de o corpo se confrontar com o espaço construído”.
Esse medo, descreveu, afecta tanto a escola, cheia de regras sobre o que “não se pode fazer”, criticou, “como aquilo que fazemos (ou deixamos de fazer) fora dela”, nas ruas de onde as brincadeiras infantis e as próprias crianças desapareceram. E, claro, afecta também as nossas decisões, na hora de as levar para a escola.
(I)mobilidade escolar
Seja ele sentido ou usado como justificação para algum comodismo ou dificuldade de mudar rotinas, o medo da rua espalha-se dia fora, mas é mais evidente, com variações, às 9h e às 17h. De manhã, por todo o país, milhares de portugueses transportam os filhos de carro até ao portão da escola e ficam parados em segunda fila, em frente, alimentando o trânsito e a impaciência dos outros pais e mães que aguardam — alguns para fazerem o mesmo — até que a criança entre no recinto escolar ou regresse, à tarde, à carapaça do carro.
Este caos tantas vezes acompanhado por várias infracções ao código da estrada, como parar ou estacionar em cima do passeio ou nas passadeiras — e a que as autoridades, muitas vezes, fecham os olhos —, é uma evidência, entre outros, desse comportamento excessivamente protector. E este, assegura Carlos Neto, multipli
“Na minha cidade, um pai ou uma mãe não andam com a criança pela mão porque não há medo”
“Vivemos numa sociedade cheia de medo, medo do risco, de o corpo se confrontar com o espaçoconstruído”
cado por outras atitudes semelhantes, na escola e em casa, tem impacto no próprio desenvolvimento psicomotor, na capacidade de interpretar o espaço público e os seus riscos e, claro, na autonomia das crianças.
“Educar é distanciar”, dizia Carlos Neto, que tem como amigo e grande referência internacional o pedagogo Francesco Tonucci. Tal como defende o académico português, o projecto “A Cidade das Crianças”, desenvolvido por este italiano, assenta em vários pilares, como o da autonomia dos mais novos para tomar decisões sobre questões que afectam a sua vida e o direito ao brincar na rua, por exemplo.
Quando se pergunta às crianças se gostariam de ir para a escola com autonomia, a resposta raramente é negativa. E criar condições para que tal aconteça, ainda que na companhia de um adulto, e por caminhos onde outros adultos possam gerar um ambiente que inspire confiança, faz também parte do projecto, abraçado por cidades de dezenas de países e por Valongo e Torres Vedras, em Portugal. Noutras urbes, mesmo sem adesão a esta rede, o princípio começa, paulatinamente, a ganhar expressão na rua.
Crianças independentes
Em Pontevedra, no âmbito do ambicioso programa que limitou a velocidade automóvel em toda e cidade e no concelho e, fruto das mudanças no espaço urbano e no ambiente rodoviário, 80% das crianças ente os 6 e os 12 anos vão a pé para a escola, e 60% destes vão mesmo sozinhos, descreveu esta semana, no Porto, o alcalde Miguel Anxo Llores. Para tal, o município pediu o apoio de comerciantes — os “olhos que vigiam a rua”, como descrevia Jane Jacobs nos anos 60 — e pôs adultos a ajudarem nos atravessamentos mais complicados.
Homenageado no Congresso das Cidades e Vilas que Caminham pelo exemplo que tem sido para cidades portuguesas que pretendem trilhar este caminho de devolução do espaço público às pessoas, Miguel Anxo Lores voltou a resumir alguns eixos da estratégia que seguiu, ao longo de 24 anos, para fazer de Pontevedra uma cidade sem mortes nas ruas desde 2011. E pediu coragem aos autarcas presentes. “Temos obrigação de tomar decisões políticas valentes”.
Uma delas, “que sempre gera contestação”, foi acalmar o tráfego, fazendo desaparecer, com o tempo, aquele que é desnecessário para o funcionamento da cidade. Objectivo conseguido não com radares, opção que critica, mas com mexidas na infra-estrutura, como as 1500 passadeiras sobreelevadas que impedem um condutor de acelerar no espaço urbano. “Na minha cidade, um pai ou uma mãe não andam sempre com a criança pela mão porque não há medo”.
De facto, “as crianças foram afastadas da rua porque a rua é insegura. Mas é rua é também insegura porque
afastamos de lá as crianças”, afirmou Tonucci numa palestra, o mês passado, em Valongo. Nesse evento muito concorrido, o pedagogo que é precisamente uma das inspirações de Pontevedra relembrou uma indesejada irmandade de Portugal com Itália, também citada por Carlos Neto no encontro do IMT. Num estudo de 2015, os dois países apareciam com os piores resultados num estudo sobre mobilidade e actividade física das crianças. E, desde então, o uso do automóvel aumentou no nosso país.
Há já vários exemplos no país em que se promovem os “comboios” a pé ou bicicleta (aqui, Aveiro). Em cima, Francesco Tonucci, autor do livro A Cidade das Crianças
O italiano insiste que desenvolver estratégias que devolvam as crianças à rua é benéfico para elas e tem impacto na forma como os condutores de automóveis percepcionam o espaço envolvente, obrigando-os a cuidados redobrados. E, no limite, tornará o ambiente urbano mais seguro para todos, principalmente para idosos, deficientes, pais e mães com bebés, para quem as ruas se tornaram, também, inóspitas. “Na minha cidade, os carros não apitam, esperam para passar. Se alguém apita, é porque é de fora”, descrevia Miguel Anxo Lores, lembrando que 10 km/h, a velocidade máxima no casco histórico da sua cidade, foi a velocidade a que circulou na VCI ao chegar ao Porto.
Mas como convencer os pais a darem esse espaço aos filhos e filhas num país em que o ordenamento urbano afastou escolas, empregos e zonas habitacionais, onde se insiste em reabilitar faixas de rodagem negligenciando passeios, onde as ciclovias são escassas e, apesar de ambiciosas metas estratégicas, falta dinheiro para as fazer cumprir e nem sequer é obrigatória a elaboração de planos de mobilidade urbana sustentável. Como convencer encarregados de educação num país em que, depois da pausa forçada da pandemia, a sinistralidade em arruamentos urbanos voltou a aumentar em 2022?
Apesar de ser conhecido o impacto da velocidade excessiva na sinistralidade rodoviária, Portugal decidiu deixar ao critério de cada município a redução da velocidade máxima, em zonas urbanas, para 30 km/h. Ainda esta quinta-feira, na abertura do II Congresso das Cidades e Vilas que Caminham, o secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, Carlos Miguel, lembrava, em tom de lamento, que no ano passado quase 63% dos sinistros aconteceram em arruamentos, e que quase metade (47%) das 462 mortes registas nas primeiras 24 horas devem-se a despistes, colisões ou atropelamentos dentro das localidades.
Restabelecer a confiança
Organizados empresarialmente, ou sob a forma de cooperativas, em associações nacionais, locais ou grupos de pais informalmente reunidos, não faltam portugueses a lutar contra este statu quo e nas últimas semanas os seus esforços tiveram dois palcos privilegiados: em Ílhavo, no âmbito do I Congresso Internacional da Mobilidade Escolar Sustentável, promovido pelo Município de Ílhavo e organizado pela empresa Nuno Zamaro, do antigo futebolista e conhecido promotor do uso da bicicleta José Nuno Amaro; e em Lisboa, no âmbito do primeiro encontro do IMT, dedicado à autonomia das crianças no caminho para a escola.
Como ponto comum ao que se ouviu nos dois encontros, foi notória a vontade de contrariar este medo, esta desconfiança, erguendo, como fazem a Estrada Viva, a Mubi, ou a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta, um caderno de encargos amplo, que o Governo tarda em pôr em prática, e desenhando soluções com os recursos disponíveis. Se uns oferecem competências às crianças para andarem a pé ou em bicicleta, como nos projectos da NunoZamaro ou do Desporto Escolar sobre rodas, que chegam a centenas de escolas, outros fazem de uma rua ou praça a sala de aula dessa autonomia, como acontece, por exemplo, com a Braga Ciclável ou com a Ciclo Aveiro.
Mas depois, há que chegar aos pais e sair para a rua. E para isso, em Évora faz-se da serpente Papa-Léguas, um jogo em que as crianças ganham pontos se forem para a escola em modos activos, uma forma de as pôr os pais a participar. Porque mesmo que a viagem comece de carro, se este for estacionado um pouco mais longe da escola ainda há pontos a ganhar pelo resto do percurso feito a pé, explicava Teresa Engana, do município, nos dois encontros. A estratégia, semelhante à seguida num jogo sobre alimentação saudável, os heróis da fruta, resulta porque poucas crianças recusam participar no jogo. E ninguém gosta de perder.
Local Há Projectos Para Incentivar As Crianças A S
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