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Numa encruzilhada: a ameaça à democracia argentina à sombra de Javier Milei

Matías Bianchi

Num momento em que a Argentina assinala 40 anos de democracia ininterrupta, o período mais longo da sua história, há uma sombra inquietante a pairar sobre a sua paisagem política. O aparecimento de Javier Milei, um economista libertário que se tornou candidato à presidência com uma retórica impregnada de autoritarismo, constitui um verdadeiro desafio ao tecido democrático do país.

A ambivalência de Milei relativamente às normas democráticas é evidente. Numa entrevista televisiva, questionou a eficácia da democracia, citando o Teorema da Impossibilidade de Arrow para argumentar contra a tomada de decisões democráticas. Mais preocupantes são as suas propostas que contradizem directamente a Constituição argentina, como a sugestão de proibir as manifestações públicas — uma clara violação das liberdades civis. “Estamos a chegar ao fim do modelo de castas, baseado nessa ideia atroz de que, onde há uma necessidade, nasce um direito [humano], mas esquecem-se de que alguém tem de pagar por isso. E a aberração máxima [desta ideia] é a justiça social”, uma afirmação que faz referência aberta e contradiz o artigo 14 bis da Constituição. Do mesmo modo, ele e outros como ele propõem a promoção de uma lei inconstitucional que viria a “proibir manifestações públicas”.

Há muito que a Argentina se tem vindo a debater com a má gestão económica, a escalada da pobreza e uma crescente desilusão com a sua classe política. Neste clima de descontentamento, a mensagem de Milei, que ostensivamente desafia o poder instalado, encontrou ressonância. Mas a mudança que defende pode potencialmente pôr em causa as conquistas democráticas alcançadas a muito custo ao longo de quatro décadas.

À medida que se aproxima a segunda volta das eleições presidenciais, neste domingo, 19 de Novembro, a perspectiva da presidência de Milei suscita todos os sinais de alerta, ao representar uma grave ameaça para as instituições democráticas da Argentina. Mesmo que não seja eleito, as suas ideias e estilo autoritários, como o comício em que brandiu uma motosserra, podem permanecer no discurso político do país, desafiando as forças democráticas a forjar um contrato social renovado que promova e expanda a democracia.

Recentemente, o nosso grupo de reflexão (think thank), Asuntos del Sur Global, levou a cabo um estudo que mede as ameaças autoritárias à democracia argentina, através da sistematização das declarações públicas dos candidatos presidenciais. O estudo adaptou o trabalho seminal de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, dois académicos de Harvard, intitulado Como Morrem as Democracias. As conclusões são alarmantes: o discurso e as propostas de Milei mostram sinais claros de autoritarismo — uma perspectiva preocupante para o futuro democrático da Argentina.

Uma das ameaças identificadas pelo estudo é a negação da legitimidade dos opositores políticos — um sinal alarmante de comportamento autoritário. O modo depreciativo como Milei se dirige aos seus opositores, que vão desde rotulá-los de “diarreia política” a agressões verbais como “filhos da mãe colectivistas” ou “até de uma cadeira de rodas te conseguia esmagar”, enquadram-se perfeitamente neste padrão. Este tipo de retórica não só polariza o discurso político, como também mina os próprios princípios do debate democrático e da divergência.

Outro indicador de tendências autoritárias é a tolerância ou o apoio à violência. A reacção de Milei à tentativa de assassinato da antiga presidente Cristina Kirchner — tratando-a como um mero ato criminoso e não como um sintoma de um mal-estar social mais profundo —, juntamente com o seu elogio de actos repressivos durante a sombria era da ditadura argentina, demonstra uma inclinação perigosa.

Talvez o elemento mais alarmante seja a disponibilidade de Milei para restringir as liberdades dos opositores e da imprensa. As ameaças de acções judiciais contra jornalistas e adversários políticos revelam uma disposição para sufocar a divergência e a crítica — mais uma característica dos regimes autoritários.

Os riscos são elevados. A Argentina encontra-se num momento crítico, ao enfrentar a escolha entre preservar o seu legado democrático ou aventurar-se por um caminho que pode corroer as suas bases democráticas, conquistadas com tanto sacrifício.

Num momento em que a Argentina se encontra nesta conjuntura crítica da sua história política, a responsabilidade de salvaguardar a sua democracia não recai apenas sobre os ombros dos seus cidadãos e cidadãs: é um apelo à acção que deve ressoar em todo o mundo.

Para o povo argentino, o apelo à acção é claro: participação e vigilância. A participação, não só em termos de voto, mas também de participação activa no discurso democrático, é vital. A sociedade civil, os meios de comunicação social e as instituições educativas devem trabalhar em conjunto para promover uma cultura de valores democráticos e de pensamento crítico. Isto implica pôr em causa as narrativas autoritárias, promover um diálogo político transparente e baseado em factos e fomentar o compromisso da próxima geração com os princípios democráticos. Para além disso, os argentinos devem responsabilizar os seus líderes, garantindo que quaisquer tentativas de minar as normas democráticas são recebidas com uma resistência forte e unificada.

É necessária uma resposta concertada a nível internacional. As nações democráticas, as organizações internacionais e os grupos de defesa dos direitos humanos devem acompanhar de perto a situação na Argentina, prontos para contrariar quaisquer mudanças antidemocráticas. A influência económica e diplomática pode ser utilizada para apoiar as instituições democráticas e as liberdades civis. Além disso, a comunicação social internacional deve chamar a atenção para os desafios democráticos da Argentina, através do aumento da consciencialização global e ao fomentar a solidariedade. Esta atenção internacional pode ter um efeito dissuasor nas tendências autoritárias e dar apoio moral àqueles que lutam pela democracia na Argentina.

Por último, é essencial reconhecer que a luta pela democracia na Argentina é emblemática de uma tendência global mais vasta em que os valores democráticos estão a ser postos à prova. Como tal, apoiar a democracia argentina transcende as fronteiras nacionais: faz parte de um imperativo mais amplo de defender os ideais democráticos em todo o mundo. Neste mundo interligado, o destino da democracia numa nação tem impacto na estabilidade e nos valores da comunidade global. Assim sendo, a defesa da democracia argentina não é apenas uma preocupação da Argentina — é uma responsabilidade regional e global, que exige uma resposta unificada e resoluta. Tradução de Nelson Filipe

Director do Asuntos del Sur Global

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2023-11-19T08:00:00.0000000Z

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