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“Sou poupadinha”, assegurou aos juízes a ex-presidente da Raríssimas

Paula Brito e Costa começou a responder em tribunal por abuso de confiança e falsificação de documento

Ana Henriques

Por momentos, a juíza que dirige o julgamento da ex-presidente da Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras — Raríssimas deixa transparecer alguma incredulidade. Paula Brito e Costa começou a ser julgada na passada segunda-feira no Campus da Justiça, em Lisboa, acusada de abuso de confiança e falsificação de documento, num processo em que assumiu especial relevo a roupa de luxo paga com verbas da instituição.

E se nuns casos a arguida alegou tratar-se de legítimas despesas de representação, noutros garante que se tratava de gastos pessoais cujas facturas entregava nos serviços de contabilidade da associação para justificar a parcela do salário que lhe era paga a título de ajudas de custo: mil euros num ordenado que totalizava a certa altura os quatro mil.

“Era um horror arranjar esse valor em facturas”, queixa-se Paula Brito e Costa à medida que vai sendo interrogada em tribunal. “E logo eu, que sou poupadinha.”

À sua frente, a juíza Margarida Alves tem os volumes do processo onde são descritos com detalhe pelo Ministério Público (MP) os gastos da presidente da Raríssimas no El Corte Inglés, de vestidos Karen Millen de centenas de euros a fatos de homem, passando por roupa interior, despesas de cabeleireiro e até depilação. Os gastos considerados ilícitos incluem ainda cremes para o corpo e um produto para fixar dentaduras postiças. “Intitular-se poupada perante algumas despesas que aqui surgem…”, observa a magistrada, que passado um bocado volta à carga: “Como é que a presidente de uma instituição de solidariedade social submete estas facturas a pagamento? Porquê? A que propósito? Estamos a falar de dinheiro que não é nosso, que pertence à instituição.”

Desta vez, Paula Brito e Costa já não diz, como fez numa entrevista em 2017, que a roupa de centenas de euros não era luxo nenhum, que eram só uns vestidinhos e que toda a vida tinha vestido Karen Millen. Mas ainda fala da necessidade de se vestir para receber a rainha de Espanha, que visitou a instituição em 2014.

O transporte de Letizia em solo luso serviu de pretexto para a Federação de Associações de Doenças Raras, igualmente dirigida por Paula Brito da Costa, contrair um aluguer de longa duração de um BMW topo de gama. “Gostava de perceber o racional dessa decisão. Por que é que uma instituição criada para servir os outros precisava de um carro de gama alta?”, torna a juíza. “Por que não adquirir em vez disso duas viaturas utilitárias? A necessidade de transportar a rainha podia ter sido colmatada com um aluguer só para aquela ocasião.”

Depois de explicar que foi uma farmacêutica que patrocinou o BMW e de acrescentar que as duas organizações que governou ainda tiveram outro veículo idêntico, além de um Mercedes, a arguida acaba por desistir de dar mais justificações: “Não consigo responder. A decisão estava tomada.”

Negando ter alguma vez usado o cartão de crédito da instituição para pagar despesas pessoais, Paula Brito e Costa também não consegue explicar a compra com ele de fatos de homem também no valor de centenas de euros. Talvez tenha sido o tesoureiro da Raríssimas a usar o cartão, lança. Pelas contas do MP, ascende a 102.663,54 euros o valor dos bens e serviços obtidos e as quantias recebidas de forma ilegítima pela antiga dirigente, a título de ajudas de custo/ reembolso de despesas.

Mas a arguida diz e repete que tudo o que fez foi seguir instruções dos serviços, porque só tinha o 12.º ano — entretanto fez um curso superior de Gestão e Marketing — e nada percebia de contabilidade. “Ó dona Ana Paula, ele há coisas que…”, impacientou-se outra vez a juíza, recordando que antes de se tornar dirigente da instituição a tempo inteiro Brito da Costa tinha um negócio seu, um quiosque de jornais.

Quando não eram os serviços a darlhe instruções, eram os órgãos da Raríssimas a prodigalizar-lhe aumentos de vencimento e prémios de produtividade, para compensar, segundo contou, as horas sem fim que passava ao serviço da instituição. Revelou ainda que tinha autorização da Raríssimas para gastar até mil euros mensais em roupa no El Corte Inglés, uma vez que eram muitos os eventos em que tinha de comparecer.

O MP contabiliza mais de 102 mil euros em bens e serviços obtidos de forma ilegítima por Paula Brito e Costa

Raríssimas reclama dinheiro

Depois de se ter comprometido a pagar-lhe 74 mil euros em prestações mensais, por via de um acordo judicial relacionado com o facto de a ter despedido na sequência deste escândalo, a Raríssimas reclama agora à sua antiga dirigente mais de 452 mil euros, parte dos quais relacionada com a quebra de donativos sofrida por a instituição ter visto a sua reputação ser fortemente abalada. Paula Brito e Costa foi afastada do lugar em Dezembro de 2017, após denúncias sobre uma alegada gestão danosa.

Quase metade do montante reclamado diz precisamente respeito aos danos reputacionais que a instituição sofreu. Mas o advogado da arguida contesta-os, dizendo que as pessoas colectivas não podem sentir dor, não lhes podendo por isso ser causado qualquer sofrimento moral ou psicológico.

Recorde-se que tanto o filho como o marido de Paula Brito da Costa passaram, a determinada altura, a trabalhar para a instituição. Este último fê-lo enquanto recebia o subsídio de desemprego, tendo o MP desistido de o obrigar a pagar uma coima por a infracção ter prescrito. Seja como for, a situação foi comunicada ao Instituto da Segurança Social, que ainda está a tempo de exigir reembolso. Nelson Costa era fiel de armazém da Raríssimas. Sem consequências criminais ficou a contratação de Manuel Delgado, ex-secretário de Estado da Saúde, que recebia como consultor em part time 3000 euros por mês.

Entre as principais contra-ordenações detectadas, estão 61 casos de condutores que não detinham um contrato escrito que comprove a relação laboral com o operador de TVDE e ainda nove casos em que o operador de TVDE não tinha licença para operar.

Também foram detectadas 89 infracções relativas à organização do trabalho e ao registo dos tempos de condução e repouso, acrescentaram.

Em 19 casos, as viaturas não tinham o dístico identificador obrigatório de TVDE afixado e 11 delas nem sequer tinham este elemento identificador. Treze veículos estavam a operar sem a inspecção periódica obrigatória.

A PSP e a GNR destacaram que a operação foi realizada em “vias onde se verificou um maior volume de veículos afectos a esta actividade”.

A operação contou também com a colaboração da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT), o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) e da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), que registaram ainda 147 infracções. Lusa

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2023-11-20T08:00:00.0000000Z

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