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O toque pele com pele faz crescer bebés como João e Lourenço, que chegaram “antes do tempo”

Está a nascer no São João um projecto com a Universidade do Minho para avaliar os impactos do contacto pele com pele em bebés prematuros

Sofia Neves Texto, Adriano Miranda Fotografia

Uma bata muito fina e muito azul, de plástico, é tudo o que separa a pele de Sílvia da pele do bebé que “quis nascer antes do tempo”. João veio ao mundo com um quilo, às 26 semanas e quatro dias, não tinha ainda completado seis meses de gestação. Tão pequenino que o medo de o segurar era gigante. A mãe sabia que a gravidez era de risco, mas não contava que o bebé fosse nascer muito prematuro, abaixo das 32 semanas. Entre cuidados intensivos e intermédios, João está há quase três meses no serviço de neonatologia do Hospital de São João, no Porto.

São já três meses da mesma rotina. Chegar à enfermaria pela manhã. Fazer a desinfecção, vestir a bata. Preparar-se para cuidar de João, que entretanto já cresceu. Com 38 semanas, o bebé trocou a incubadora pelo berço, mas passa grande parte do tempo na imensidão dos braços da mãe ou do pai. Numa situação normal, se João não estivesse em isolamento, Sílvia nem estaria a usar bata ou luvas e este contacto entre mãe e filho, tão importante para aumentar as probabilidades de sobrevivência dos prematuros, seria mesmo pele com pele, como tantas vezes foi durante o internamento prolongado que transformou a enfermaria em segunda casa da família. “Parabéns, João”, lê-se num desenho colorido e cheio de balões colado acima do berço e junto ao cadeirão onde Sílvia passa horas sentada com o primeiro filho.

“Este contacto pele com pele foi importante desde o primeiro minuto. A primeira vez que o vimos estava dentro da incubadora. Não sabíamos o que podíamos fazer, ele era muito pequenino, tínhamos medo. A primeira vez que lhe tentei tocar comecei a tremer”, conta

Sílvia Castro sem tirar os olhos de João, que dorme tranquilamente com uma das mãos, do tamanho de um dedo mindinho, encostada ao peito da mãe.

Com a ajuda e orientação da equipa médica, o casal foi perdendo o medo e ganhando confiança até conseguir executar o “método canguru” — que consiste em colocar o bebé na vertical e junto ao peito nu da mãe ou do pai — de forma autónoma. “Sentimos que estamos a fazer parte da evolução dele e que o João realmente precisa de nós e nós dele. Há um laço que se cria. Caso contrário, só iríamos ser espectadores. Chegávamos, olhávamos e parecia que não era o nosso bebé, era apenas um bebé que vínhamos visitar.”

O “método canguru” nasceu no fim dos anos 1970, quando a falta de incubadoras levou um pediatra da Colômbia a recorrer à imaginação. Desde então, é utilizado como procedimento complementar das modernas tecnologias no caso de bebés estabilizados do ponto de vista médico, mas que ainda não podem abandonar a incubadora ou ter alta.

As novas directrizes em torno dos “cuidados maternos no método canguru”, divulgadas há exactamente um ano, representaram uma mudança significativa em relação aos protocolos que estavam em vigor para bebés prematuros e aos conselhos anteriormente dados pela agência de saúde da Organização das Nações Unidas. As directrizes são particularmente pertinentes para os nascimentos que ocorrem em áreas com pouco acesso à tecnologia e electricidade fiável, como explicou a OMS na altura. Os benefícios deste contacto são vários, tanto para bebés como para pais: diminui o tempo de separação, estimula a amamentação, favorece um maior desenvolvimento neurocomportamental e psicoafectivo do recém-nascido, reduz o stress e a dor e favorece um melhor controlo térmico do bebé.

Deitados ao peito dos pais, os bebés conseguem ouvir os batimentos cardíacos, habituam-se ao toque e aos cheiros e aprendem a reconhecer o seu vulto. No fundo, passam por um conjunto de experiências significativas importantes num período crítico de construção neurofisiológica. Este método (em particular) e o contacto pele com pele (no geral) vão ser o foco de um projecto científico que está a nascer e que envolve o Laboratório de Neurociência Psicológica do Centro de Investigação em Psicologia da UMinho e o Centro Hospitalar Universitário de São João, sendo financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

A psicóloga Joana Antunes, juntamente com uma equipa de médicas e enfermeiras do São João, quer perceber como é que estas experiências sensoriais dos bebés prematuros, que já são padrão no São João e em muitos hospitais portugueses, podem ser benéficas na trajectória de desenvolvimento ao longo dos anos. O grupo de trabalho começou este mês a recrutar pais e bebés prematuros para fazer acompanhamento e recolha de dados.

“A ideia é que possamos ficar com uma evidência científica de que estas práticas centradas no cuidado dos bebés resultam. Mais do que ter recomendações, queremos perceber de que forma está a acontecer, de que maneira está a ser implementado e o que mais podemos fazer para beneficiar esta implementação”, refere a psicóloga.

Alexandra, Francisco e o pequeno Lourenço foram uma das primeiras famílias a integrarem o projecto. O bebé trocou as voltas aos pais quando nasceu às 34 semanas e está, desde o início do mês, numa incubadora dos cuidados intermédios do serviço de neonatologia do hospital, onde o casal tem passado grande parte dos dias. Logo após o nascimento de Lourenço, a vontade de pegar o filho ao colo era muita e uma das primeiras coisas que aprenderam foi como fazer o contacto pele com pele. “A primeira vez que fiz estava ligeiramente ansiosa porque ele tinha muitos espasmos e eu ficava um bocadinho desconfortável. Não sabia se estava tudo bem ou não”, confessa a mãe com um brilho no olhar. “Agora, acho bastante relaxante e muito confortante. É uma sensação mesmo única.”

“Paiemãenãosãovisitas”

Na unidade de neonatologia, seja nos cuidados intermédios ou nos intensivos, os rostos dos pais não deixam mentir: o seu mundo todo está dentro destas incubadoras e destes berços. Para alguns, como os pais das gémeas prematuras Maria Rita e Maria Inês, as preocupações são a duplicar. No quarto ao lado, outra das mães, aconchegada num roupão cor-de-rosa, alterna o olhar entre a incubadora onde a filha está deitada dentro de um “ninho” de pano e os monitores que mostram os sinais vitais da bebé. Estas famílias encontram algum conforto em saber que, se assim o desejarem, podem passar dia e noite ao lado dos bebés e que têm a liberdade de entrar e sair quando precisarem.

“Os pais entram aqui e vêem uma incubadora, uma panóplia de máquinas, um bebé pequenino, frágil. Uma das palavras que mais usam é ‘medo’. Têm medo de tocar, de desestabilizar mais o bebé. O nosso papel é mostrar-lhes que eles não são visitas aqui no serviço, são participantes activos nos cuidados e que são tão importantes como nós para o bebé”, explica Sandra Costa, médica do São João que está envolvida no projecto.

No caso da grande prematuridade, os desafios são muitos e variados. Além de todo o suporte de ventilação, nutrição, alimentação e medicação, é preciso encontrar estratégias para proteger o desenvolvimento normal destes bebés, que estão expostos a uma série de estímulos que não iriam acontecer se ainda estivessem dentro da barriga da mãe, como refere a médica. “São bebés muito frágeis, que requerem muitos cuidados, são verdadeiramente cuidados intensivos. Quando se fala em neonatologia, às vezes esquecemo-nos disso.”

Além disso, Madalena Ramos, enfermeira-chefe do serviço, que sabe de cor o nome de muitos dos bebés que lhe passaram pelos braços ao longo dos anos (alguns até já são adolescentes), diz que é preciso ensinar os pais a lerem os sinais que o recém-nascido transmite. “O bebé comunica connosco. Não fala, mas tem outras formas de comunicar. Outra coisa que também permitimos e que nos distingue dos outros serviços é que os pais podem trazer as coisas deles e do bebé e, na medida do possível, incentivamos a que as utilizem. Queremos que este ambiente seja o mais parecido possível com o lar”, explica a enfermeira, que recorda um episódio de um pai que estava a ler um livro com uma mão enquanto segurava o bebé ao peito com outra.

Psicóloga a tempo inteiro

Pode dizer-se que Sara Almeida é outra das “particularidades” do serviço de neonatologia do São João. Esta psicóloga clínica está a tempo inteiro dedicada a pais e bebés, quer na unidade quer em consulta, mesmo depois da alta. “Acho que, neste momento, não temos muito mais hospitais que ainda consigam manter uma psicóloga clínica a tempo inteiro”, refere a médica.

Um internamento prolongado tem impacto não só no bebé, mas também na saúde mental dos pais e irmãos, no caso de ser o segundo ou terceiro filho. Há uma criança em casa que fica praticamente sem mãe, uma mãe que está no serviço de forma quase permanente e um pai que, por normalmente ter uma licença mais curta, tem de ir trabalhar com um bebé a lutar pela vida. “Nas mães, o primeiro sentimento é o de culpa. Dizem-me ‘o que é que fiz para o meu bebé nascer prematuro?’ Muitas vezes, apresentam uma sintomatologia de stress pós-traumático muito semelhante às pessoas que passaram por situações de stress de guerra. Os mecanismos de defesa que elas activam são muito

Os bebés ouvem os batimentos cardíacos e habituam-se ao toque e ao cheiro dos pais

O grupo de trabalho começou este mês a recrutar pais e bebés prematuros para recolha de dados

parecidos. Do ponto de vista da saúde mental, mesmo quando corre tudo muito bem, é muito desafiante para estas famílias. Todo o processo de crescimento e a trajectória de desenvolvimento têm particularidades.”

Nem sempre o apoio psicológico passa por um trabalho directo com as famílias. Por vezes, como explica Sara Almeida, o trabalho para chegar a uma abordagem para uma situação em particular é feito em backoffice com a equipa de enfermagem, que passa mais tempo com as mães e bebés.

“Lembro-me de uma situação com uma mãe de uma bebé que está agora nos cuidados intermédios. É uma bebé de altíssimo risco, que tem uma cânula porque passou por uma traqueostomia [buraco que foi aberto na garganta para facilitar a entrada de ar nos pulmões]. A mãe dizia que nunca iria conseguir trocar a cânula e agora já o faz sozinha. Eu trabalhei directamente com esta mãe, mas também com a equipa de enfermagem. É preciso estar na equipa, não se pode dar apenas umas horas”, refere.

É inevitável que os profissionais de saúde criem lanços com os bebés de quem cuidam durante semanas a fio, daí que Sara Almeida também faça um “grande trabalho de apoio e suporte” a toda a equipa, como descreve a médica Sandra Santos. “Este trabalho também pode ser psicologicamente muito exigente para nós. Ficamos ligados a estes bebés e por vezes é muito duro quando as coisas têm retrocessos grandes. A doutora Sara dá-nos suporte para nós podermos continuar a dar suporte aos pais.”

Dezassete camas

O serviço onde João e Lourenço estão internados faz parte da ala pediátrica do Hospital de São João, que funcionou durante dez anos em contentores e que foi inaugurada em Dezembro de 2021.

“Para além das instalações estarem novas, a tipologia de serviço também mudou. Temos quartos individuais nos cuidados intensivos em possibilidade de alojamento conjunto com os pais. Em Dezembro, vamos inaugurar áreas que vão permitir que os pais fiquem com os seus bebés em alojamento conjunto. Isto muda completamente a organização do serviço, porque antes tínhamos apenas um espaço aberto com todas as incubadoras”, explica Henrique Soares, director do serviço de neonatologia do São João.

Segundo o médico, o serviço é agora uma réplica de uma unidade sueca e permite e prestar cuidados de uma forma mais individualizada e centrada no desenvolvimento do bebé e da família. A unidade tem capacidade para receber dez bebés nos cuidados intensivos e sete nos intermédios, num total de 17 recém-nascidos, mas é possível crescer até às 24 camas. Aqui nasceram, em 2021 e 2022, 300 bebés prematuros, 75 destes com menos de um quilo e meio. “Temos muito orgulho no nosso serviço porque conseguimos acolher todo o tipo de bebés doentes. Não transferimos bebés para nenhuma instituição, tratamos de todos.”

Às 38 semanas, cada suspiro de João já não é um susto. Ganhou peso e cada vez pede mais leite. E, depois de três meses de internamento, Sílvia perdeu os receios dos primeiros tempos. “Já estamos numa preparação para sair daqui”, afirma com confiança. Por enquanto, o recém-nascido vai ficando no lugar mais seguro da enfermaria: os braços da mãe.

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2023-11-19T08:00:00.0000000Z

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