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Ministério Público: como chegámos aqui?

Maria José Fernandes Procuradora-geral adjunta

Por estes dias, tenho sido abordada para me pronunciar em televisões sobre as adjacências processuais, jurídicas e políticas do caso que vem preenchendo os espaços da comunicação social e que deixou os cidadãos perplexos. Não aceito, pois não posso falar com total liberdade. Já os sindicalistas desfrutam desse privilégio e temos-lhes escutado afirmações controversas, cínicas no dizer de alguém.

Como foi possível acontecer tudo aquilo a que assistimos na semana passada? Como se chegou até à tomada de decisões que provocaram uma monumental crise política e cujas consequências vão ainda no adro? Uma coisa é certa: ver um certo político populista de extrema-direita monopolizar a defesa da atuação do MP dá muito que pensar! Outros haverá que resguardaram o regozijo da crise por entre dentes e aguardam a sua oportunidade num silêncio de marketing.

O meu colega António Cluny escreveu hoje um interessante artigo de opinião, onde destaca a atuação individual de cada procurador no despacho de inquéritos criminais, pelo que considera errado que o jornalismo se refira coletivamente ao MP como “autor” das decisões agora controvertidas. Conclui que a sua experiência na Eurojust lhe permitiu confirmar a necessidade de uma coordenação forte e ágil, por procuradores com legitimidade e experiência, sem o que não haverá sucesso na luta contra a criminalidade atual.

Originalmente, o MP foi concebido como um corpo hierarquizado piramidal, para representar o Estado nos tribunais, tendo no topo o procurador-geral da República, que dirigia, coordenava, determinava e dava instruções, plasmadas em diretivas. De permeio, entre o procurador-geral da República e os procuradores da base, a organização hierárquica é regionalista, coincidindo com os quatro tribunais da Relação. Desde há décadas, paulatina e persistentemente, o sindicato (SMMP) lançou e insistiu numa reivindicação de maior autonomia individual dos procuradores nas decisões que tomassem, em todas as áreas de intervenção, mas e sobretudo na investigação criminal. O que se pretendia era que cada procurador conduzisse os processos-crime sem interferências, ao seu grado, exigência que tem subjacente e camuflada uma desconfiança relativamente às hierarquias intermédias e superiores, a meu ver injusta e infundada. Porque há-de ser mais “autónomo” e idóneo um procurador da base do que um de topo? Desde logo, como em todas as profissões, há a excelência, a mediania e o sofrível, pelo que se impunha a supervisão do que fosse mais relevante.

Noutros estados europeus avançados, vigoram modelos interventivos diferentes. A gama é variada.

Na Itália dos anos 1980/90, como os leitores recordarão, a atuação autónoma dos procuradores era de tal ordem que começou a criar graves problemas de desestabilização e até de oportunismo político, com os resultados que se conhecem. Foi necessário introduzir normas de equilíbrio, ali por via de regulamentação interna.

Não há muito tempo, no processo do caso Tancos, quem investigava (DCIAP) pretendia inquirir como testemunhas o Presidente da República e o primeiro-ministro. O então diretor daquele departamento opôs-se e impediu tal diligência, por entendê-la inútil, tendo fundamentado a sua decisão num verbalizando no discurso público também têm o elogio garantido. Pelo contrário, quem se opõe à estridência processual é rotulado protetor dos corruptos! Neste enquadramento e sendo a nossa dimensão quase paroquial, poucos têm pulso para impor o que deve ser a sensatez, a escorreita interpretação jurídica dos factos, o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos suspeitos, a investigação célere.

Em todos os departamentos de investigação e ação penal, mas mormente no DCIAP, deveria privilegiar-se o pensamento crítico, a discussão interdisciplinar, nomeadamente com colegas de outras jurisdições tocantes ou conexas; temo que se tornem cabines herméticas, onde pontuam algumas prima donnas intocáveis e inamovíveis e onde a “falta de meios”, de peritos disto e daquilo é sempre a velha razão para os passos de tartaruga a que se movem as investigações.

Permitiu-se a criação de uma bruma de auto-suficiência totalmente nefasta e contrária ao que deve ser a qualidade e a excelência desta profissão; os desfechos de vários casos já julgados permitem extrair que há aspectos do trabalho dos procuradores de investigação a carecer revisão e aprimoramento pelo exercício da autocrítica.

Uma investigação bem feita e fundada em provas irrefutáveis conduz a uma acusação de boa síntese factual e melhor incriminação nos tipos de ilícito aplicáveis ao caso. Um julgamento com esta base acusatória corre rápido e permite a quem julga uma decisão célere e bem fundamentada.

Não resisto e exemplificar, por curiosidade, o que deve ser a ponderação de conceitos no crime de recebimento indevido de vantagem, que tem como elemento objetivo nuclear o recebimento de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida.

O conceito de “vantagem patrimonial” não oferece qualquer dúvida interpretativa: é um acréscimo de património. Já a vantagem “não patrimonial” é de mais difícil recorte, podendo ser uma vantagem social. Assim, a oferta de um almoço num restaurante caro será uma vantagem? Em que se traduz essa vantagem? No prazer da degustação? E se o agente não apreciou a refeição, quid iuris?

Falso

O contexto

Marcelo Rebelo de Sousa viajou até à Guiné-Bissau a propósito das comemorações dos 50 anos da declaração unilateral de independência do país. O chefe de Estado foi questionado sobre quem incentivou a sua reunião com a procuradora-geral da República, em Belém, a 7 de Novembro. O objectivo deste encontro era que Lucília Gago desse explicações sobre a Operação Influencer, que levou à demissão do primeiro-ministro nesse mesmo dia.

O chefe de Estado disse que a reunião ocorreu a pedido de António Costa: “O primeiro-ministro já esclareceu que ele pediu para eu pedir o encontro à procuradora-geral da República, mais do que isso não posso esclarecer.” Este sábado, contudo, o primeiro-ministro desmentiu o Presidente da República.

Os factos

No dia 7 de Novembro, pelas 14h, António Costa apresentou a sua demissão. Mas antes disso, de manhã, surgiram as primeiras notícias de que a PSP estaria a realizar buscas em vários ministérios e ainda na residência oficial do primeiro-ministro, no Palácio de São Bento. Em causa estavam projectos de exploração de lítio e hidrogénio. Na sequência destas notícias, António Costa reuniu-se de manhã, pelas 9h30, com Marcelo Rebelo de Sousa, na sua residência oficial, em Belém, durante 40 minutos. Depois de o primeiro-ministro abandonar as instalações, a procuradora-geral da República, Lucília Gago, chegou a Belém para se reunir com o Presidente.

De acordo com a notícia de 10 de Novembro do Expresso, foi durante a reunião das 9h30 que António Costa pôs o Presidente da República a par das buscas que estavam a decorrer. E sugeriu a Marcelo Rebelo de Sousa que se reunisse com Lucília Gago.

Esta quinta-feira, enquanto Marcelo visitava a Guiné-Bissau, o chefe de Estado falou sobre os eventos do dia em que Costa se demitiu. Abordando a questão da reunião com a procuradora-geral, constatou: “O senhor primeiro-ministro já esclareceu que ele pediu para eu pedir o encontro à senhora procuradora-geral da República.” No dia seguinte, a 17 de Novembro, o Expresso avançava uma vez mais que tinha sido Costa a pedir a Marcelo que chamasse Lucília Gago a Belém. Porém, este sábado, durante um intervalo da reunião da comissão nacional do Partido Socialista, António Costa desmentiu o chefe de Estado: “Terá de perguntar ao Presidente que comentário publico terei eu feito; não me ocorre nenhum”, disse aos jornalistas. Depois, acrescentou que não comenta as conversas que tem com Marcelo: “Nunca falei, em oito anos, nem por mim nem por heterónimos que escrevem nos jornais.”

Por esclarecer fica se, efectivamente, foi António Costa a sugerir a Marcelo Rebelo de Sousa que se reunisse com Lucília Gago no dia 7 de Novembro. Certo é que não disse publicamente – ao contrário do que Marcelo afirmou – se o tinha feito ou não.

Em resumo

A afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa é, portanto, falsa. O primeiro-ministro não disse publicamente que tinha sido ele a sugerir ao Presidente da República reunir-se com Lucília Gago. Mariana Marques Tiago

Política

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2023-11-20T08:00:00.0000000Z

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