Kissinger, o traidor
Manuel Loff
Émuito curiosa a fúria que por aí vai contra o velho Kissinger. Sobretudo considerando que ela se manifesta entre os mais fervorosos atlantistas que defendem a necessidade da supremacia ocidental por cima de qualquer princípio de gestão minimamente democrática e multilateral do sistema internacional — que é o mesmo que dizer por cima da Carta das Nações Unidas todas as vezes que os EUA e os seus aliados “tiverem” que a desrespeitar. Ela surge no momento em que parece começar a esgotar-se a fase inicial de cruzada antirrussa, na qual se vai tornando crescentemente indigesta a propaganda com que se manipulou História, ideologia e geopolítica de vulgata para dizer que Putin é simultaneamente soviético e czarista,
Holodomor e Auschwitz, financiador de Le Pen e do PCP, ao mesmo tempo que se descreve o Governo nacionalista ucraniano como modelo de democracia e o Batalhão Azov como um grupo de simples patriotas que teriam abandonado oito anos de retórica e parafernália neonazi e de perseguição contra minorias étnicas na Ucrânia.
O que me pergunto é como o homem que agora se condena por propor que se regresse ao statu quo anterior à guerra, e que ainda é o mesmo que foi conselheiro da Administração Obama e a quem Hilary Clinton chamava “amigo”, considerado pela oficiosa Foreign Policy em 2015 como o melhor responsável de política externa norte-americana desde 1965, passou a ser descrito nos mesmos termos boçais com que na maioria dos media portugueses se descreve alguém que escreva no Avante! A explicação deve estar no facto de ser cada vez mais evidente que o consenso ocidental — que nada tem a ver com o do resto (isto é, a maioria) do mundo — abre fissuras naquele que, em 2014, Kissinger, já então a propósito da Ucrânia, definia como sendo “o grande teste da política [externa:] saber como terminam [as guerras], não como começam”. “Na minha vida, vi quatro guerras começarem com grande entusiasmo e apoio público, todas elas sem se saber como terminá-las e das quais nos retirámos unilateralmente” (Kissinger, Washington Post, 5/3/2014).
Mal começou a invasão russa, a memória deste artigo fez com que os falcões da guerra juntassem Kissinger, símbolo por antonomásia do establishment norte-americano, aos que descrevem como sendo os apaziguadores de Putin. O dogmatismo anti-histórico que desde há meses campeia entre quem adota narrativas nacionalistas sobre a Ucrânia e a Rússia vem acompanhado de uma muito perigosa retórica belicista que, do lado dos falcões ucranianos/ocidentais, espelha o mesmo discurso do lado russo: não se negoceia enquanto não houver vitória militar. Desde que esta propaganda passou a assumir como objetivo irrenunciável a vitória ucraniana sobre a Rússia, sem explicar como ela pode ser viável sem os custos há muito antecipados de um conflito nuclear, qualquer sugestão, como a de Kissinger em Davos, de que o Governo ucraniano deveria regressar às negociações (porque, parece que não, mas já se negociou nesta guerra) para “idealmente [repor] o anterior statu quo”, passou a ser lida como convite à traição.
Está assim aberta a caça aos apaziguadores! O problema é que a lista vai longa e é
Espaço Público
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2022-05-31T07:00:00.0000000Z
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