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A escola Lionel Messi da estratégia política

Francisco Mendes da Silva Advogado. Escreve à sexta-feira

Uma das melhores modas recentes da Internet é a dos filmes em que Lionel Messi é apanhado pelos telemóveis dos adeptos nas bancadas, em grande plano, a deambular solitária e diletantemente no centro do relvado, distante de onde se desenrolam as batalhas pela posse da bola, como se nada daquilo fosse do seu interesse ou responsabilidade, até ao momento em que um colega repara nele, ali perdido na grande planície, e lhe endossa o esférico, para que o pequeno argentino — primeiro sem oposição, depois com uma oposição que se aproxima ofegante e atarantada — faça a sua magia.

São filmes hipnotizantes que mostram como Messi se adaptou à idade. Antigamente estava sempre em movimento e sempre próximo da acção. Qualquer quadrado vazio com o perímetro de uma cabine telefónica, no meio da barafunda, servia para que ele recebesse a bola e daí partisse em gloriosos ziguezagues. Agora, com o génio contido num corpo diferente, descobriu as vantagens de estar parado, como alguém que permanece imóvel à beira-mar enquanto as vagas vão e vêm. No passado, Messi procurava o espaço vazio. Hoje, aguarda pelo espaço vazio.

Esses filmes poderiam ser usados como metáfora para diversas lições de vida. Sobre a virtude da paciência, sobre as recompensas da espera, sobre a futilidade de fazer parte de rebanhos. Menos ambicioso, uso-os para comparar este Lionel Messi tardio com António Costa.

Calma. Não estou a dizer que Costa seja equiparável a Messi. Não o é no talento futebolístico (ainda que, sem conhecimento de causa, me limite aqui à petulância do analista especulador). E está igualmente muito longe de ser o “GOAT” da política.

A minha tese é que António Costa também percebeu há muito as vantagens de andar ali a deambular no centro do terreno, sem fazer nada de muito incomodativo ou significativo, nada de muito à esquerda ou muito à direita.

Enquanto a esquerda se torna mais de esquerda e a direita se torna mais de direita, Costa fica sozinho no grande espaço vazio do centro. E é para ele que quem tem a bola a acaba, inevitavelmente, por dirigir. A bola é o poder; quem a tem é o eleitorado.

O que depois o nosso primeiro-ministro faz com esse poder não é tão brilhante quanto o que Messi faz com a bola, mas a verdade é que tem marcado os golos que lhe interessam. Ou seja, tem vencido eleições.

O maior erro de análise do tempo da “geringonça” foi sempre o de se achar que o PS tinha virado à esquerda. Não foi assim que António Costa quis que o eleitorado visse as coisas. À nascença, os entendimentos com o Bloco e o PCP foram uma necessidade para a conquista do poder, mas depois Costa quis aproveitá-los para estabelecer um contraste: de um lado, a esquerda dogmática, com as suas tentações radicais; do outro, o PS, com a sua forma pragmática de governação.

A direita achou que Costa tinha cedido à esquerda. A prova de que muita gente achou o contrário — que Costa era, afinal, um dique contra a esquerda — é que, quando o Bloco e o PCP deram razões de vitimização ao PS, saltando fora da maioria orçamental, o PS os arrasou com uma maioria absoluta.

Olhando agora para a direita, António Costa precisa de que o eleitorado só veja nela três coisas: que não se entende; que, se se entender, contará com a direita radical; e que, de qualquer modo, até já se radicalizou, por influência e mimetismo desta última.

Parece contraditório criticar a direita por não se entender e, ao mesmo tempo, por desejar entender-se com o Chega. Só que, da perspectiva do PS, são duas teses que confluem numa só: a da falta de confiabilidade da direita e da solidão do PS no campo aberto do centro político em Portugal.

É por isso que o PSD fez bem em não votar a favor da moção de censura do Chega, discutida esta semana. É urgente não dar pretextos ao PS. O PSD até deveria ter ido mais longe, dando um enquadramento moral e ideológico à sua abstenção, para mostrar tanto o que o separa da esquerda quanto o que o separa da extrema-direita.

Não é preciso ter medo do Chega. Com este “show-oè” parlamentar, talvez Ventura ganhe alguma simpatia junto do eleitorado que aprecia o estilo performativo anti-PS. Duvido de que em eleições sirva para estancar o voto útil no PSD, em especial se se mantiver esta tendência de aparente empate com o PS nas sondagens.

Já o voto favorável da Iniciativa Liberal não tem qualquer sentido. Se a moção nunca teria efeito, o simbolismo era o que contaria. E o simbolismo que ficou é a imagem da IL mais próxima do Chega do que do PSD.

Mas essa foi apenas uma de duas decisões péssimas da IL na última semana parlamentar. A outra foi a oposição ao voto de saudação a Graça Freitas, a ex-directora geral da Saúde, pelos quarenta anos de dedicação à saúde pública.

Nunca duvidei da utilidade de um partido que remasse contra o consenso dos confinamentos radicais e outras medidas sanitárias durante a pandemia. Não achava

O voto favorável da IL [à moção de censura] não tem qualquer sentido. O que ficou é a imagem da IL mais próxima do Chega do que do PSD

sequer que fosse uma coisa necessariamente de direita. Seria liberal, sim, mas não só. O combate à pandemia gerou uma visão afunilada nos decisores públicos, que provocou muitas crises – a da aprendizagem, a da saúde mental, a dos pequenos negócios. Era preciso chamar a atenção para elas.

Só que não foi Graça Freitas quem decidiu a implementação das medidas mais controversas, que de resto dependiam dos estados de emergência, cujo decretamento coube ao poder político. Graça Freitas era só uma funcionária, que olhava para a realidade valorizando apenas o que a sua função mandava valorizar. Se os políticos não tiveram visão de conjunto, salvaguardando os outros interesses, a culpa não foi dela.

De qualquer modo, a dedicação à causa pública é um bem em si mesmo. E a democracia tem momentos de elevação solene em que se reconhecem simbolicamente os que se entregaram a essa causa, independentemente da concordância ou discordância da forma como exerceram o seu papel. A incapacidade de perceber isso é uma das marcas de água do radicalismo político.

A IL comportou-se como um daqueles extremos inconsequentes, cujos malabarismos entusiasmam a claque durante alguns segundos, mas que acabam sempre por entregar a bola ao adversário numa zona comprometedora. António Costa recepciona-a, agradece, e segue o seu caminho.

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2023-09-22T07:00:00.0000000Z

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