Revolução sem Sangue: a tomada da sede da PIDE é um filme
Num dia inesquecível, como é o derrube da ditadura, muitos acontecimentos marcaram as horas a caminho da liberdade. O fim da polícia política, simbolizado pela ocupação do seu quartel-general
Nuno Ribeiro Texto Rui Gaudêncio Fotografia
Durante as décadas da ditadura, a Rua António Maria Cardoso, apesar de o número 98 corresponder ao Teatro São Luiz, nada teve da alegria da cultura e sempre foi sinónimo da repressão. Paredes-meias com o Chiado e também junto ao Teatro de São Carlos, a casa da ópera de Lisboa, no número 22, lá estava a sede da Direcção-Geral de Segurança, como foi rebaptizada durante o marcelismo a PIDE [Polícia Internacional e Defesa do Estado], a polícia política de um estado de excepção.
Foi assim até ao 25 de Abril de 1974, quando, no dia a seguir à rendição de Marcello Caetano, as tropas do Movimento das Forças Armadas (MFA) a tomaram pelas 9h46 de dia 26. Essa história vai ser contada no filme Revolução sem Sangue, com o “sem” rasurado. Conta a história das cinco vítimas do assalto.
“Na escola, tinham-me ensinado que na Revolução não tinha sido disparado nenhum tiro, até que li o livro do jornalista Fábio Monteiro, que relata a história dos que morreram”, afirma, ao PÚBLICO, o realizador Rui Sousa. É a história dessas vítimas, entre as quais um soldado, um estudante universitário e um funcionário administrativo da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, cercada pela população, que suscitou o interesse do jovem realizador de 36 anos.
“A ocupação da António Maria Cardoso estava inicialmente prevista, mas quando Otelo distribuiu a missão a Jaime Neves, este recusou por falta de condições”, explica Vasco Lourenço, da Associação 25 de Abril. “A ocupação foi então retirada da ordem das operações, mas já em cima do acontecimento foi decidido tomar a sede da PIDE e, depois de uma primeira tentativa, uma força de fuzileiros coordenada [pelos oficiais] Martins Guerreiro, Almada Contreiras e Pinheiro de Azevedo executou a missão”, conclui.
Durante uma longa noite, os agentes da polícia política, barricados nas instalações da sede, queimaram arquivos e intimidaram a tiro os sitiantes.
“As vítimas eram pessoas comuns, não eram militantes, mas tinham simpatias políticas”, descreve a guionista Ana da Silveira Moura, que tem uma ideia difusa daqueles acontecimentos. Então, tinha dois anos. “Há coisas de que me lembro desse Portugal, a guerra do Solnado [A História da Minha Ida à Guerra, de 1908”, com texto original do espanhol Miguel Gila, que em 1961 funcionou como charge contra a guerra colonial do actor Raul Solnado]”, recorda Ana, nascida em Setúbal.
A reconstituição da vida das vítimas — também um jovem de 17 anos que trabalhava na já desaparecida boîte Cova da Onça, na Avenida da Liberdade — levou ao contacto com as famílias. Assim souberam as suas histórias e porque ali estavam.
O estudante de Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa João Amado, cuja morte está assinalada com uma sala na residência universitária na Rua Casal Ribeiro, tinha uma máxima: “Antes morrer livre do que em paz sujeito.”
Numa conversa com os seus familiares, a mãe recordou à equipa de produção ter-lhe perguntado o que aquilo significava. “É ironia”, relata Ana da Silveira Moura. João Amado viu truncada a sua máxima. Quando morreu, já o país estava livre da ditadura.
O moço de recados da PIDE morreu onde não queria estar. “Estava a tentar outro emprego, era da aldeia de Loivos, perto de Chaves”, refere Rui Sousa. “Tinham-lhe arranjado um trabalho na GNR de onde quis sair devido a um episódio de violência e, então, um familiar arranjou-lhe o que disse ser um trabalho sossegado na capital, um emprego de escritório”, prossegue o realizador. Por telefone, confidenciou à família que vira lágrimas de sangue no local de trabalho, a António Maria Cardoso.
“Ele é os nossos olhos dentro da PIDE, onde viu queimarem os arquivos”, desvela um pouco do argumento Ana da Silveira Moura. Foi deste modo, com estes relatos e as informações das famílias, que o guião foi tomando forma. A argumentista admite que a redacção terá durado cerca de 17 horas, somando todas as sessões de trabalho de Ana com o realizador.
“Foi iniciado a 10 de Setembro e a primeira versão com 164 páginas foi concluída a 22 de
Havia gente nas padarias a querer levar 100 pães de uma vez, o que levou o Luiz Pacheco a comentar que vai haver uma bela açorda
Rui Sousa Realizador
Dezembro de 2021, sempre em part-time, fora das horas de expediente”, calcula. Agora, limadas as arestas, as páginas são 104.
A golpada no cinema
“Há ironia no argumento, dicas, piscadelas de olho, é um filme para estar atento, quanto mais souber [dos acontecimentos] mais entende”, avisa a argumentista.
Particular atenção foi dedicada ao tempo, circunstâncias e modas que então se viviam. “No filme não há imagens em flashback, se utilizarmos imagens de arquivo é no princípio e no final”, revela Rui Sousa.
A história decorre de 24 a 26 de Abril de 1974, com o arranque da Revolução e a data dos funerais das vítimas da Rua António Maria Cardoso. “Os familiares consideraram positivo haver alguém que se interessasse pela história”, congratula-se o realizador. E há um desabafo. “As
O casting (em cima) e a equipa: Pedro Negrão, director de fotografia, Ana da Silveira Moura, guionista, Nuno Rocha, produtor, Patrícia Vasconcelos, castings, Rui Sousa, realizador, Roberto Santos, produtor
famílias dos pides tiveram ajudas do Estado, os familiares dos mortos, estas pessoas esquecidas não tiveram”, lamenta.
Após dois meses de recolha de material e tendo como assessores históricos Irene Pimentel e António Araújo, realizador e argumentista fizeram uma viagem a um país que não conheceram.
Foi assim, com surpresa e sorriso irónico, que constataram que o filme em exibição no Cinema Tivoli era A Golpada, de George Roy Hill, com um elenco de luxo: Robert Ford, Paul
Newman e Robert Shaw. Foi um dos grandes êxitos de Hollywood dos anos 70 do século passado, com a atribuição de sete Óscares.
Não há qualquer analogia entre o filme que veio do outro lado do Atlântico e a acção militar do 25 de Abril de 1974. Em Hollywood, contava-se a história de gangsters, burlões e ajustes de contas entre mafiosos, com um guião certo. Em Lisboa, também a cores, mas ao vivo, o que para muitos era um golpe para acabar com a ditadura surpreendeu pela sua dinâmica popular não prevista no roteiro.
Contudo, a ironia levou o realizador e argumentista a meterem uma dica sobre a obra de Roy Hill. “No filme, há um diálogo entre personagens sobre a ida ao cinema para ver aquele filme”, desvela Ana da Silveira Moura.
Também depois da pesquisa, a equipa decidiu levar à película um caso ocorrido a 25 de Abril. Com tanques, jipes e militares na rua, comerciantes queixaram-se de açambarcamento de produtos. “Havia gente nas padarias a querer levar 100 pães de uma vez, o que levou Luiz Pacheco a comentar que vai haver uma bela açorda”, aponta Rui Sousa. No filme, o episódio é relembrado.
“Mais do que a reconstituição da época, queremos reproduzir a vivência, o ambiente”, retoma a argumentista.
Oportunidade de um casting
A banda sonora repousa no long play As Vozes do 25 de Abril, editado pelo Rádio Clube Português, de cujas instalações na Rua Sampaio e Pina eram emitidos os comunicados do MFA. “Temos os áudios das vozes do Salgueiro Maia e do jornalista Alfredo Alvela [a narração e a captura de som deste junto à sede da PIDE], que vamos aproveitar na íntegra”, precisa o realizador.
Como pontos de filmagem, para além da Rua António Maria Cardoso e do restaurante Galeto (numa conversa entre dois protagonistas), constam a residência universitária, a Praça do Comércio, a estação de Santa Apolónia, a Avenida da Liberdade e o inevitável Largo do Carmo.
Ali, junto ao Quartel-General da Guarda Nacional Republicana, as rajadas de metralhadora da força de Santarém comandada por Salgueiro Maia sobre as janelas mais altas levaram à rendição do regime e à extracção de Caetano e do seu pequeno séquito de ministros a bordo da chaimite Bula. Os disparos ocorreram às 15.30 de 25 de Abril, pondo fim ao impasse.
“Temos de fechar o Carmo e a António Maria Cardoso durante três dias, estamos já no processo de o solicitar à Câmara Municipal de Lisboa”, prevê o produtor Roberto Santos.
A produção conta com apoios. “O Exército português já garantiu que podemos utilizar chaimites, tanques, jipes e camiões”, anuncia. E, também, do Instituto de Cinema e Audiovisual, da Comissão das Comemorações do 25 de Abril e do patrocínio do Licor Beirão.
Em andamento, estão as negociações para o investimento da TVE, da Televisão da Galiza e da Movistarplus de Espanha. “Vamos tentar ultrapassar a fasquia de um milhão de euros, o nosso objectivo não é ficar pelos dinheiros públicos, assumimos que estamos à procura de mecenas e de investidores para cumprir um mínimo de 20% de apoios privados”, assegura o produtor.
“Em termos de narrativa, temos muitos protagonistas, as cinco vítimas, mais os seus familiares e amigos”, desvela a argumentista. “Vamos conseguir alguns consagrados, mas a ideia é que, sendo as vítimas pessoas desconhecidas, que os actores sejam, também, desconhecidos”, aponta Nuno Rocha, da equipa de produção.
Em 31 de Janeiro, no Centro Cultural de Carnide, decorreu um
casting. Num corredor, Gonçalo Almeida, de 22 anos, e André Marujo, de 27, esperam pela sua vez. São uns dos 16 agendados para aquele dia.
“Estamos aqui pela oportunidade e o simples facto de estar a fazer cinema sobre a história de Portugal, o fim da ditadura é um marco importante para nós, pois o 25 de Abril trouxe a liberdade e a possibilidade de fazer um
casting”, diz Marujo.
Enquanto fazem a prova, outros dois jovens candidatos ensaiam o seu diálogo. À saída, André Marujo e Gonçalo Pereira comentam. “É sempre uma responsabilidade, nada é certo, há a incerteza de ficarmos com o papel”, diz o primeiro. “Há sempre esta tensão, mas com a prática dos castings aprende-se a lidar com a tensão”, pondera o segundo.
Ambos têm experiência de
castings, diversos ensaios e vêm da escola Profissional de Teatro de Cascais, de Carlos Avilez. “Do mestre Carlos Avilez”, insiste Marujo.
Para o realizador Rui Sousa é a estreia em longa-metragem após 16 curtas. A estreia está agendada, em Lisboa, para 25 de Abril de 2024, nos 50 anos da Revolução, e a distribuição já está assegurada.
Política Comemorações Dos 50 Anos Do 25 De Abril
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2023-02-05T08:00:00.0000000Z
2023-02-05T08:00:00.0000000Z
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