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O centro de dados de Sines vale todo este imbróglio?

Ricardo Paes Mamede Economista e professor do Iscte

Um governo suportado por uma maioria absoluta caiu por causa de um centro de dados que está a ser construído em Sines. Na essência, esta é a história que conhecemos até agora sobre a Operação InÇuencer.O Ministério Público suspeita de que a Start Campus, empresa responsável pelo projecto, beneficiou de favores especiais do Governo, por via de advogados com relações próximas aos detentores do poder político. O primeiro-ministro demissionário sugeriu (sem o dizer) que o Governo agiu para atrair um grande investimento. Mas sabemos pouco sobre o valor que esse investimento tem para o país.

Sabemos, isso é certo, que os grandes centros de dados são um negócio promissor. O seu desenvolvimento tem sido impulsionado pela computação na nuvem, a televisão por streaming, a mineração de criptomoedas, o trabalho à distância, a inteligência artificial — enfim, todas as actividades que exigem grandes capacidades de processamento e de armazenamento de dados. Segundo a consultora McKinsey, a procura destes serviços duplicou na última década e deverá duplicar outra vez até 2030.

Para os investidores em grandes centros de dados, Portugal é um destino atractivo. Nos EUA e não só, o sector tem sido olhado com grande cepticismo, devido à sua elevada pegada de carbono, ao elevado consumo de água (necessário ao arrefecimento dos equipamentos) e à pressão que exerce sobre as redes eléctricas nacionais e locais. Para reduzir a polémica, os investidores apostam hoje na construção de centros de dados mais sustentáveis, que recorrem a energia eléctrica de fontes renováveis para alimentar os equipamentos e à água do mar para os arrefecer. Sines oferece uma e outra a bons preços, assim como terrenos a custos acessíveis e boa conectividade a redes intercontinentais de cabos de fibra óptica.

O facto de Portugal ser atractivo para estes investidores não significa, no entanto, que o investimento em causa seja benéfico para o país na mesma proporção.

Quando anunciou o projecto em 2021, o Governo apresentou-o como “o maior investimento estrangeiro captado pelo país desde a Autoeuropa” — cerca de 3,5 mil milhões de euros. O Governo apontava ainda o “enorme potencial de exportação de serviços” e a alteração das “características do investimento” que tem sido captado para Sines, na direcção da transição digital. Mas estes dados e

Com base no que se sabe, o grande centro de dados de Sines parece longe de constituir uma aposta decisiva para o nosso futuro comum

argumentos valem menos do que aparentam.

Desde logo, a comparação com a Autoeuropa é desmedida. A empresa alemã de Palmela emprega perto de cinco mil trabalhadores e compra grande parte dos componentes de que necessita a empresas que produzem no país. Também mantém relações próximas com várias outras entidades nacionais (universidades, institutos politécnicos, centros tecnológicos, centros de formação, etc.), contribuindo assim para o desenvolvimento do sistema nacional de inovação.

O impacto esperado do centro de dados de Sines não tem nada de semelhante — seja ao nível do emprego, do valor acrescentado nacional, do efeito de arrastamento sobre a economia ou do desenvolvimento tecnológico do país.

Segundo o próprio Governo, a criação de empregos directos pela Start Campus até 2025 corresponderá a 1200 postos de trabalho — quatro vezes menos do que o número de trabalhadores da Autoeuropa. E nada garante que esses postos de trabalho beneficiem muito a economia local ou até a nacional: uma parte importante das tarefas altamente qualificadas envolvidas na operação dos grandes centros de dados — arquitectura, gestão e segurança de redes, sistemas de informação e dados — tendem a ser desenvolvidas à distância, incluindo a partir do estrangeiro. A criação de emprego directo e indirecto em Sines não seria despicienda, é certo: para um concelho com menos de 20 mil habitantes permanentes, afectado pelo encerramento recente da central termoeléctrica, a criação de algumas centenas de postos de trabalho qualificados ou semiqualificados fará alguma diferença. Mas o efeito global é modesto.

O impacto limitado na economia nacional fica ainda mais evidente se tivermos em conta a origem dos equipamentos utilizados. Os grandes centros de dados albergam a infra-estrutura tecnológica necessária para fornecer aplicações e serviços digitais, e para armazenar e gerir grandes volumes de informação. Trata-se, essencialmente, de equipamentos electrónicos (como servidores, unidades de armazenamento de dados e equipamento de rede), mas também de dispositivos relacionados com a produção e o armazenamento de energia, com a ventilação e o arrefecimento das instalações ou com a segurança dos edifícios. Ao contrário do que acontece com a fileira automóvel, poucos destes equipamentos são produzidos em Portugal (que foi perdendo competitividade na indústria electrónica para os produtores asiáticos nas últimas décadas). E com certeza que os investidores não ficariam à espera do desenvolvimento de uma indústria nacional dedicada para procederem à execução do projecto.

Na verdade, em alguns casos, a instalação de grandes centros de dados é acompanhada pelo compromisso dos investidores de apoiarem o desenvolvimento da indústria ou do sistema científico e tecnológico nacional. Isto tende a acontecer com mais frequência quando o investimento é conduzido por uma grande plataforma tecnológica ou uma fornecedora de serviços na nuvem (como a Amazon, a Google, a IBM, a Microsoft ou a Oracle). Para estes actores, as contrapartidas que acompanham os investimentos são vistas como acções de relações públicas que visam reforçar a proximidade com as autoridades nacionais. Também aqui o caso da Start Campus é distinto: os financiadores da operação são fundos de investimento, que pouco têm para oferecer ao desenvolvimento tecnológico do país.

É possível identificar algumas vantagens potenciais para Portugal do investimento da Start Campus, como seja o eventual reforço da conectividade nas redes internacionais de fibra óptica ou o reforço da imagem do país como destino de investimentos na esfera digital. Se existem outras vantagens, é pena que pouco ou nada se tenha dito sobre elas. Com base no que se sabe, o grande centro de dados de Sines parece longe de constituir uma aposta decisiva para o nosso futuro comum. Ainda menos um motivo que justifique um envolvimento atípico das autoridades na sua promoção. Como aqui já escrevi há tempos, o investimento estrangeiro é um meio, não um fim. Também sobre isto valeria a pena debater, em vez de assumir que todo o capital que vem de fora é bom por natureza e merece todos os esforços das autoridades públicas, ao ponto de as pôr em xeque.

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2023-11-20T08:00:00.0000000Z

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