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Biden ganhou e Xi não perdeu

Teresa de Sousa Jornalista. Escreve ao domingo

A cimeira de S. Francisco foi sobretudo um ganho para Joe Biden, mesmo que não tenha sido uma perda para Xi Jinping

1.Num mundo que nos parece, por vezes, caminhar em direcção ao caos, em que a guerra regressou à Europa e Israel foi alvo de um pogrom de uma violência inaudita, a cimeira de S. Francisco entre os líderes das duas superpotências mundiais cuja competição pode determinar o futuro tinha de surgir como um bom sinal. A coreografia do encontro entre Joe Biden e Xi Jinping foi cuidadosamente desenhada para que fosse essa a percepção oferecida ao mundo. Os dois presidentes passearam-se nos jardins de uma residência nos arredores da cidade num ambiente de “velhos conhecidos”. As suas frases públicas mais citadas quiseram significar, nas palavras de Xi, que “o planeta Terra é suficientemente grande para que os dois países possam singrar e o sucesso de um deles é uma oportunidade para o outro”. Nas de Biden, “o Presidente Xi e eu concordamos que qualquer dos dois pode pegar no telefone, ligar para o outro e ser imediatamente atendido”. Definiu o encontro como uma discussão “franca, produtiva e construtiva.” A palavra mais usada pelos analistas foi “estabilização”.

2. A cimeira pôs cobro a um ano em que as relações entre Pequim e Washington desceram até um nível de tensão como não se via há muito tempo. A visita de Nancy Pelosi a Taiwan, olhada por Pequim como uma “provocação”, levou à quebra de comunicações entre os dois países a vários níveis, incluído o militar. O incidente do “balão espião” chinês que atravessou o território americano levou ao cancelamento de uma visita do secretário de Estado Antony Blinken a Pequim. O apoio da China a Vladimir Putin desde a invasão russa da Ucrânia, embora sem tentar violar abertamente as sanções americanas, pôs em evidência a “amizade” entre duas autocracias cujo objectivo comum é destruir a ordem internacional ocidental e a hegemonia americana.

Para Washington, era necessário alterar este estado de coisas para que um qualquer acidente, uma “má compreensão” ou a “falta de comunicação” pudessem levar ao conflito. Era este o principal objectivo de Joe Biden para esta cimeira. Foi conseguido. Todos os outros pontos de fricção com a China se mantêm, a começar por Taiwan e a acabar na guerra da Ucrânia, passando pelo comportamento agressivo e provocador de Pequim no Indo-Pacífico, contra os países ribeirinhos. A “guerra dos chips” vai continuar. A nova política económica americana continuará a tentar escrever novas regras para a globalização, que não agradam a Pequim. Como diz a maioria dos analistas americanos, esta espécie de “tréguas” estabelecida em S. Francisco é boa para Washington e para o mundo, mas ninguém pode prever quanto tempo durará. “Uma semana, um mês, mais tempo”, interrogava-se Evan Medeiros, professor em Georgetown e antigo consultor de Obama, num debate organizado pela Foreign Affairs.

3. As respostas, temos de as encontrar sobretudo em Pequim. O que levou Xi Jinping até S. Francisco, apenas um ano depois de se ter visto “entronado” como o “novo Mao”, durante o Congresso do Partido Comunista Chinês, em Outubro, e a sessão plenária da Assembleia Nacional Popular, no mês seguinte?

Katsuji Nakazawa, analista da Nikkei Asia, resumia essas razões numa análise publicada na sexta-feira passada. “Uma luta de poder nos bastidores foi o que levou Xi até à Califórnia para se encontrar cara a cara com o seu homólogo americano pela primeira vez num ano.” Não por acaso, lembra o analista, a cimeira acontece três meses depois de um conclave do PCC, na estância estival de Beidaihe, durante o qual Xi foi alvo de alguns avisos bastante duros sobre o rumo da economia do país, feitos pela velha guarda do partido, lembrando-lhe que as relações com os EUA permitiram à China prosperar e que a actual liderança deveria ter o cuidado de não as destruir.

A economia é, de facto, a explicação mais forte. A recuperação pós-pandemia não foi o que se esperava. A profunda crise do sector da construção civil não dá ainda sinais de aliviar. O desemprego jovem atingiu níveis raramente vistos, ultrapassando os 20 por cento. O investimento externo caiu acentuadamente. As exportações também. As democracias ricas estão a desviar as suas cadeias de abastecimento para outras paragens, porque a pandemia lhes ensinou que a dependência excessiva da China era demasiado arriscada. Anunciaram uma nova fase de “de-risking”. As novas políticas de

Biden continua fiel à sua visão de mundo. Talvez por isso tenha lembrado que continua a ver em Xi um ditador

reindustrialização seguidas nos EUA e na Europa estão a transformar um modelo de globalização que durante muito tempo foi altamente benéfico para a China.

A vida não correu a Xi como o desejado também noutros aspectos. Os protestos generalizados contra as rígidas medidas de confinamento durante a pandemia atingiram níveis que não se viam desde Tiananmen. As defecções dos ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, dois aliados muito próximos de Xi, continuam sem qualquer explicação. A guerra na Ucrânia teve como resultado a consolidação da relação transatlântica e o reforço da própria coesão europeia, contrariando a linha seguida por Pequim de dividir para reinar.

Xi e a liderança chinesa continuam a acreditar que o longo prazo será determinado pela “ascensão do Leste e o declínio do Ocidente”. Mas o declínio americano não se afigura tão evidente, nem o seu crescente isolamento — outra profecia chinesa — parece estar a acontecer. Pelo contrário. Depois de um breve período em que a Administração Trump tentou seguir por aí, desfazendo e desvalorizando alianças e parcerias, Joe Biden dedicou os primeiros anos do seu mandato a reconstruí-las, seguindo de resto a grande estratégia americana desde o fim da II Guerra. E não apenas na Europa. Antes do seu encontro com Xi, tratou de restaurar e reforçar todas as alianças na região do Indo-Pacífico. Criou uma aliança de defesa tripartida com a Austrália e o Reino Unido, conhecida como AUKUS. Deu uma nova vida ao QUAD (Diálogo Quadripartido de Segurança) com a Índia, Japão e Austrália. Reforçou as alianças de defesa com o Japão e a Coreia do Sul, face a uma China cada vez mais agressiva. Poucos presidentes foram tão “abertos” sobre o apoio norte-americano a Taiwan — de longe, a questão mais sensível do relacionamento entre Pequim e Washington e a mais perigosa.

4. Como reconhecem quase todos os analistas, a cimeira foi sobretudo um ganho para Biden, mesmo que não tenha sido uma perda para Xi. Do lado de lá do Atlântico prevalece, de resto, a prudência em relação a este “apaziguamento”, utilizando a velha expressão da Guerra Fria. Também ninguém embandeira em arco com as dificuldades actuais da economia chinesa, que podem ser revertidas. Mas quase toda a gente reconhece que a era do “milagre económico” do crescimento chinês de dois dígitos terminou.

Taiwan continua a estar no centro do interesse nacional chinês. A corrida tecnológica continua a estar no centro da competição entre as duas maiores economias. A China continua a ter como estratégia destronar a hegemonia americana e a ordem internacional liberal dominada pelo Ocidente. Os Estados Unidos vêem na China o único rival capaz de desafiar essa hegemonia e a sua estratégia assenta na contenção do seu poderio, evitando um confronto militar directo através da dissuasão.

5. “O Presidente americano acredita que o seu país e o mundo, em geral, estão mais seguros se os Estados Unidos mantiverem o seu papel de polícia do mundo”, escrevia Gideon Rachman no Financial Times, recordando as próprias palavras de Biden: “É a liderança americana que mantém o mundo unido. São as alianças da América que nos mantêm seguros, a nós, americanos. Poríamos tudo isto em risco se abandonássemos a Ucrânia, se virássemos as costas a Israel.”

Os EUA e a Europa também jogam nesta terrível guerra europeia a sua credibilidade e a sua influência no mundo. Em relação ao conflito em Gaza, Pequim ainda não condenou publicamente o massacre perpetrado pelo Hamas em Israel, nem cortou relações com Telavive. Importa do Médio Oriente, com particular destaque para o Irão, mais de metade das suas necessidades de petróleo. Tem tentado preencher o vazio relativo deixado pelos Estados Unidos nos anos recentes. Mas está muito longe de poder exercer o papel fundamental que desempenham na região, como se tem visto todos os dias. Diplomático e militar.

Voltando a S. Francisco, “é quase como se o grande resultado da cimeira fosse a própria cimeira”, diz Yun Sun, directora do Programa sobre a China do Stimson Center, ao Washington Post. “Há um sentimento do lado chinês de que começam a estar fartos desta atitude de confrontação intensa em relação aos Estados Unidos, que não está a levar a China lado nenhum.”

Do lado americano, Biden continua fiel à sua visão de mundo, cujo futuro será definido pelo resultado da competição entre as democracias e as autocracias. Talvez por isso tenha lembrado que continua a ver em Xi um ditador.

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