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O fascismo “em nome da liberdade”

Manuel Loff

Ea vaga fascizante vai avançando século XXI adentro. As vitórias da extrema-direita de Geert Wilders e de Javier Milei na Argentina exemplificam bem como o fenómeno contamina todo o Ocidente. Ele não é inexplicável: resulta do ataque neoliberal aos direitos humanos, quer os individuais, nesta era da securitização que agita o espantalho dos “inimigos internos”, quer os sociais, neste agravamento permanente da pobreza que resulta da devastação neoliberal. Ele não é novo: estes homens andam por cá há muitos anos, beneficiando sempre do apoio/tolerância das direitas tradicionais onde eles próprios fizeram carreira e sem as quais nunca chegam ao poder, e das sociais-democracias (como o nosso PS) cujas políticas económicas iguais às das da direita estendem passadeiras vermelhas à verborreia desta gente.

É comum apresentar-se estes homens como sendo “antissistema”. Como Ventura ou Abascal, Wilders militou no mais tradicional dos partidos da direita holandesa (o liberal) e foi assessor de um dos seus líderes, Frits Bolkestein, o promotor da diretiva da UE que permitia às empresas escolher a legislação nacional mais desfavorável para os trabalhadores. Deputado há 25 anos, ele é tão “novidade” quanto era Bolsonaro antes de chegar à Presidência. Milei alimenta também esta encenação do “antissistémico” mas, apoiado pelos maiores empresários argentinos, aliou-se à direita liberal do ex-presidente Macri. Escolheu para vice-presidente Victoria Villarruel, filha e sobrinha de militares condenados por crimes praticados durante a ditadura de 1976-83 (Milei presidente, el futuro llegó hace rato, CTXT, 21/11/2023). Mais “sistémico” do que isto é difícil.

Na visão “conspiranóica” do mundo que ambos alimentam, o que descrevem como “islamismo” ocupa o mesmo lugar do que no antissemitismo se chamava a “conspiração judaica internacional”. A sua retórica furiosamente pró-israelita prova bem como as direitas extremas, que foram antissemitas pelo menos até aos anos 1980, passaram a adotar Israel como aliado geopolítico e “espiritual” na luta contra o que descrevem ser o principal inimigo da “civilização ocidental”. Milei converteu-se há dias ao judaísmo. Wilders acha que Israel “é a primeira linha de defesa do Ocidente” contra “a barbárie islâmica” (Haaretz, 18/6/2009), tese que, de resto, pode ser ouvida todos os dias nas televisões portuguesas em forma de comentário (medíocre) à política internacional. Os seus “inimigos internos”, contudo, não são apenas as minorias muçulmanas. Milei, por exemplo, propõe tratar manifestantes e grevistas como “delinquentes” e pura e simplesmente prendê-los.

Como ocorreu com Trump, Bolsonaro e Meloni, ou com Mussolini e Hitler, estes homens só chegam ao poder com o apoio e em coligação com a direita tradicional. Como esta é liberal e privatizadora, tanto melhor. Um dos nossos liberais pátrios alegra-se com “o simples facto de estarmos a discutir algumas das propostas [de Milei] (...) [porque] é sinal de que há vida para além do Estado e do socialismo” (Ricardo Arroja, PÚBLICO, 27/11/2023). O mesmíssimo diz a propaganda da extrema-direita que finge ser “socialismo” o que temos ao fim de 40 anos de neoliberalismo e 30 de privatizações. “À internacional do lucro veio juntar-se a reconstituição progressiva de uma internacional fascista, e o século XX mostrou-nos que as duas nada têm de incompatível” (Ugo Palheta, La nouvelle internationale fasciste, 2022).

Com Milei presidente, e com Wilders que talvez ainda não consiga ser primeiro-ministro, aproximamo-nos de novos abismos para onde se puxa a democracia até ela deixar de o ser. “Geert Wilders e o seu Partido da Liberdade são os protótipos do fascismo contemporâneo”, escreveu Rob Riemen num livro (O Eterno Retorno do Fascismo, 2010) em que citava Thomas Mann, que, em 1940, avisou os americanos que “se um dia o fascismo chegar à América, chegará em nome da liberdade”. Só o parará um forte bloco social popular de uma esquerda que desmistifique a globalização capitalista, versão UE, por exemplo, que consiga travar o autoritarismo social e a guerra permanente que a tem acompanhado há 20 anos, e se empenhe na defesa da igualdade social e da dignidade humana.

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