O Trump holandês
Nuno Severiano Teixeira Professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa e director do Instituto Português de Relações Internacionais. Escreve quinzenalmente à quarta-feira
Foi nos idos de 1999. Participei, então, num programa do Departamento de Estado americano chamado “Young Leaders”. Reunia gente, entre os 30 e os 40 anos, vinda dos quatro cantos do mundo, e que eles (Departamento de Estado) pensavam que viriam a ser líderes nos seus respectivos países. Era um puro exercício de “soft power” em que se visitavam as instituições da democracia americana: do Congresso à Administração, dos think tanks às grandes empresas, incluindo a CNN. Podia, ainda, escolher-se uma personalidade que se gostaria de conhecer, geralmente da área de especialidade do próprio, e foi assim que conheci Kissinger. Tudo isto, à mistura com visitas turísticas e espectáculos da Broadway.
Nesse grupo selecto e cosmopolita destacava-se um jovem alto, de gestos largos e franja loura que puxava insistentemente para trás. Tinha uma postura exibicionista, um tom provocador e uma retórica inflamada. Estávamos muito antes do 11 de Setembro e do islamismo radical, mas já lançava, para espanto geral, tiradas xenófobas e racistas.
Chamava-se Geert Wilders. Foi aí que o conheci e, de então para cá, se me cruzei com ele uma vez, foi muito. Mas sim, é o mesmo que ganhou as eleições e se arrisca a ser primeiro-ministro dos Países Baixos.
É um herdeiro ideológico do populismo patrimonial de Pim Fortuyn, mas radicalizado e que protagoniza, hoje, um populismo nacionalista de extrema-direita, cujas bandeiras políticas são o combate contra a imigração, o islão e a Europa. Advoga o fecho das fronteiras e uma política restritiva de imigração e asilo. Considera o Islão uma “religião fascista” e quer proibir o Corão, fechar as escolas islâmicas e banir o véu do espaço público. E, depois do “Brexit”, defende a realização de um referendo vinculativo sobre a saída da União Europeia, isto é, um “Nexit”.
O seu partido foi o mais votado, conseguiu 24% dos votos e 37 lugares dos 150 do parlamento. Wilders está na política desde 1998 e fundou o Partido da Liberdade em 2006. Cresceu eleitoralmente, mas ninguém pensou que pudesse chegar a primeiro-ministro. Ora, aqui chegados, são duas as questões fundamentais: como é que tal aconteceu? E que consequências poderá ter?
Aconteceu por duas ordens de razões. Primeiro, porque se insere numa onda populista transnacional que atravessa a Europa e a América e é consequência de uma globalização desregulada, do descontentamento dos seus perdedores e da crise de representação política, isto é, da incapacidade de os partidos mainstream representarem essas populações e responderem aos seus problemas. Segundo, porque os Países Baixos receberam um fluxo descontrolado de trabalhadores imigrantes, requerentes de asilo, estudantes internacionais e refugiados ucranianos, que colocou uma pressão brutal sobre os serviços públicos do Estado social e, em particular, a habitação. Os preços das casas subiram exponencialmente e os refugiados têm prioridade no acesso à habitação. Percebe-se bem porque é que o discurso anti-imigração, que foi o tema central da campanha, teve eco na sociedade. O seu mote era “a Holanda para o povo holandês”.
Menos evidente foi a adesão ao discurso anti-islão. E, por outro lado, a grande maioria rejeita o chamado “Nexit”. Dir-se-ia que Wilders recebeu um mandato para limitar a imigração e resolver o problema da habitação,
Wilders pode não chegar a primeiro-ministro, mas a UE deve tirar as lições deste resultado que muitos consideraram um ‘terramoto político’
mas não para erradicar o islão ou sair da União Europeia.
Que consequências terá este resultado? Conseguirá Wilders formar governo e tornar-se primeiro-ministro? O sistema holandês é multipartidário, dos mais fragmentários e onde a formação de coligações é mais difícil. Durante a campanha, Wilders moderou o seu discurso e, agora, se quiser fazer uma coligação para governar, terá de sacrificar muito do seu programa mais radical. Certamente, as medidas inconstitucionais contra o islão. E, sobretudo, deixar cair o referendo do “Nexit”.
Mas mesmo que o deixe cair, continuará a querer mudar a Europa por dentro. No sentido soberanista. E a passagem do populismo eleitoral para o populismo de governo terá um impacto nacional, como a onda populista terá impacto nas eleições europeias. A Europa poderá ficar mais fragmentada e polarizada no Parlamento, o que terá consequências na composição da Comissão, e mais dividida, entre os Estados-membros, no Conselho. Wilders pode até não chegar a primeiro-ministro, mas a União Europeia deve tirar as lições da onda populista deste resultado que muitos consideraram um “terramoto político”. Pode estar em causa o Estado de direito e o projecto europeu.
Espaço Público
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2023-11-29T08:00:00.0000000Z
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