O tique Quem é Rui Carlota, o rei dos tiktokers portugueses? Eo toque
Texto publicado originalmente no Contacto, jornal luxemburguês em língua portuguesa
Perfil Rui Carlota O tiktoker de Almeirim já ultrapassou os nove milhões de seguidores e alguns dos seus vídeos chegam a atingir dezenas de milhões de visualizações. Mas ele não se confunde com o tiktoker. Rui é técnico auxiliar de fisioterapia, o tiktoker é o que ele quiser, desde que não se aproprie da sua vida
Com todas as diferenças possíveis e imaginárias, o TikTok está hoje para a realidade como a máscara esteve um dia para a pandemia. Primeiro instalou-se, depois usou-se de forma quase experimental, depois tornou-se obrigatório usar, depois enraizou, fez-se hábito, um tique de toque, uma estranha adrenalina, um certo negacionismo, com sintomas de privação e uma necessidade compatível com a de um vício. Ambos se apropriaram da mente e do corpo, como se em conjunto tivessem desenvolvido uma nova estirpe de movimento incessante em modo estático, com a diferença de que o vício se tornou incomparavelmente mais viral do que o vírus.
A pandemia foi o silent partner mais lucrativo do TikTok. O crescimento exponencial desta app está directamente relacionado com a globalização do ócio, ao qual a covid-19 nos condenou a todos, humanidade. Foi essa a imensa plataforma que assentou na outra, como uma luva virtual, preenchendo o vazio com o vazio que se mascara de entretenimento.
Embora o seu espectro etário seja amplo, a grande massa utilizadora do TikTok é muito jovem, naquelas idades em que a vida se confunde com tudo menos com o que é.
Esse vazio, que às vezes parece ser tudo e mais alguma coisa, que às vezes se transforma num mundo imaginário, que às vezes se confunde com a realidade e esta se confunde com a vida, é só isso: um vazio sequencial de velocidade vertiginosa, tecnologia do tédio, a marchar à cadência do algoritmo supremo. Se alguma afinidade o TikTok tem com a vida, será isso: o passar. Um vive da ilusão da velocidade, o outro, na de lentidão. Nada como um tiktoker que recentemente recebeu um golpe de realidade para perceber a diferença.
Rui Carlota é o Rui. O tiktoker é outra coisa, uma personagem de ficção, em infinitos desdobramentos, como uma fábrica de avatares a viver dentro de uma pessoa só, que é o Rui Carlota, enquanto marca. O Rui é uma pessoa calma, pai extremoso, marido atencioso, alguém que aprecia a simplicidade, profissional do ramo da saúde e, nos últimos tempos, convalescente. Depois de um longo período de baixa médica, prepara-se agora para regressar ao trabalho.
O tiktoker é um rapaz inquieto, multidimensional, que vai de zombie à mãe do Zé Miguel, um travesti online, que tem barba, veste tigress, tem uma cintilante cabeleira loura e usa geralmente óculos escuros panorâmicos, da colecção Amália. No seu universo, o tiktoker já fez coisas do arco da velha, terríficos ataques de mortos-vivos, cenas de pânico colectivo, cenários dramáticos de animais ou de pessoas em perigo, que fizeram disparar para números estratosféricos as visualizações, a argamassa de qualquer
tiktoker. Sem visualizações, não se é ninguém no planeta TikTok. Se o TikTok é a “droga” dos seguidores, as visualizações são a “droga” dos tiktokers.
Já agora, avisa Rui Carlota, não convém que se faça confusão sobre o que é um
tiktoker, porque as definições são tão díspares quanto a imensidão dos vídeos. Define-se pela exclusão de partes. Nunca foi pessoa de alimentar aqueles sonhos eróticos de um dia se tornar influencer.
Também não é actor, não é um duplo, não é figurante, muito menos youtuber,
que “é pessoal respeitável, mas não é a mesma coisa que um tiktoker”.
E o que é exactamente um tiktoker, Rui? “No básico, é um produtor de conteúdos para o TikTok. Quanto se atinge um certo patamar, já não é apenas isso.” Quanto se atinge “um certo patamar”, como aconteceu com Rui Carlota, o TikTok pode tornar-se uma actividade bastante lucrativa e o tiktoker pode tornar-se uma espécie de empresário por conta própria, enquanto não é representado por uma agência da especialidade, como aquela de Ricardo Martins Pereira, “ex-marido da Pipoca Mais Doce”, que o agenciou recentemente.
De todo o modo, “em Portugal é ainda muito difícil fazer disto profissão”. Também não é coisa que lhe passe amiúde pela cabeça. “Eu tenho a minha vida fora do TikTok. E a minha profissão.” Rui Carlota é técnico auxiliar de fisioterapia na clínica D. Manuel I, em Almeirim, onde há uns anos a sua vida lançou âncora e se formou a sua família.
Um caso clínico
Como tiktoker, que é o seu lado B, os limites são os da imaginação. No lado A, a sua vida é de certo modo prosaica, até mesmo no sentido cristão do termo. Rui é casado com a Catarina Correia, que é enfermeira. Há coisa de 19 meses, nasceu Laura, a filha do casal, que é a razão de todas as razões, incluindo a de ter um circo insuf ável na sala de estar. É um apartamento moderno, num condomínio, perto do centro de Almeirim, que é agora a sua terra adoptiva.
Rui Carlota estudou em Lisboa, mas, por inúmeras razões, umas mais longínquas, outras de memória fresca, foge da cidade como o diabo da cruz. “Tirei o curso em Lisboa, que foi um stress. Depois fui morar para a Amadora, que um stress foi. Quando terminei o curso, fui fazer o estágio no Sport Lisboa e Benfica, no Seixal. Estive lá seis meses. Foi uma experiência muito enriquecedora.” Nada que se comparasse ao alívio de regressar ao Ribatejo, de onde não voltou a sair. “Vim para Almeirim trabalhar. Estou aqui desde 2018. A minha esposa é enfermeira, conseguiu colocação no Hospital de Santarém. Decidimos comprar uma casa aqui.”
O luxo, para ele, é isto: “Poder ir a pé para o trabalho.” Não só. O concelho de Almeirim, distrito de Santarém, preserva um certo ADN, próprio do Ribatejo, que é o seu. Quando muito, se fizerem questão, até pode ser a capital das lezírias, dos touros, dos forcados, da agricultura, do piece & quiet e da sopa da pedra. Se calhar, se vivesse em Lisboa, já não seria possível andar pela rua tranquilo. Em Almeirim, há pelo menos uma boa fatia etária de população para a qual ele não é anónimo, mas que respeita a sua privacidade, como uma estrela que ao TikTok pertence.
Nesse aspecto, a sua popularidade já não cabe em Portugal. Se não bastassem os dados estatísticos, bastaria a mais simples aritmética: “Portugal tem um pouco mais de 3,5 milhões de utilizadores do TikTok. Neste momento, já atingi 9,1 milhões de seguidores. É para o mundo inteiro.” Se continuar a crescer, terá em breve o equivalente em seguidores à população portuguesa, o que é meramente representativo da dimensão que atingiu no TikTok.
Rui Carlota tem 37 anos e é natural da vila de Coruche (Santarém). Na verdade, nasceu em Lisboa por um qualquer acidente do destino, mas é de Coruche de raiz, alma e coração. Para resumir uma história longa: “O meu pai e a minha mãe são ambos de Coruche, mas nesse dia deviam andar por Lisboa. E pronto... lá nasci. Os meus irmãos (três) nasceram em Santarém. O meu pai era encarregado de construção civil, sempre teve empresas de construção civil. Entretanto, as coisas deram uma cambalhotazita e ele foi para Angola.” Sem a família sair de Coruche, a vida deu mais do que uma volta. A distância acabou por separar os pais. O pai casou-se uma segunda vez. Vive hoje na Costa de Caparica. “A minha mãe ficou em Coruche.”
“Sabia lá eu o que era o TikTok”
Lá longe, no continente asiático, nasceu em 2016 o primogénito da família TitkTok: a Douyin, uma app desenvolvida pela Bytedance, que em tempos, que já parecem proporcionalmente remotos, era uma pequena startup no imenso mercado chinês, em si, um universo. A Douyin, que hoje ainda funciona autonomamente, foi a primeira versão do que seria o TikTok, designação que adoptou para o mercado internacional. O seu crescimento cósmico só se deu depois de a Bytedance, empresa-mãe, hoje uma poderosa matrona de mercado, ter em finais de 2017 concretizado a fusão (eufemismo de aquisição, com um investimento de mil milhões de dólares) com a musical.ly, uma
app com conceito e dinâmica semelhante à do TikTok, de vídeos curtos, circunscrita à música.
A musical.ly tinha imenso sucesso entre os adolescentes e jovens americanos. Foi esse mercado — e essa faixa etária — que o TikTok quis alcançar. Uma estratégia que se revelou para lá de profícua, colhendo o melhor de dois mundos, para conquistar o resto. Tendo por base o mercado chinês, alavancado pelo mercado norte-americano, em 2018 o TikTok já tinha chegado a mais de 150 mercados, com os seus conteúdos em 75 idiomas. No final de 2018 tinha mais de 500 milhões de utilizadores.
A verdadeira expansão planetária do TikTok, porém, deu-se à bolina da pandemia, com o mais globalizado dos mercados de pantufas em casa, em sucessivas vagas de confinamento, que foram assinalando os picos de um crescimento exponencial, mais rápido do qualquer vírus. Em 2021, o TikTok já tinha ultrapassado os mil milhões de utilizadores em todo o mundo, incluindo Almeirim. Por essa altura, já Rui Carlota tinha domínio nas ferramentas desse admirável mundo novo que um dia se desvendou no ecrã do seu telemóvel, que não era topo de gama, mas era jeitoso.
E como é que Rui Carlota descobriu o TikTok? Por ínvio, ou talvez não, foi mesmo na clínica D. Manuel I, onde o
tiktoker é somente Rui Carlota, o técnico auxiliar de fisioterapia. “Foi em meados de 2020. Estava a tratar de duas miúdas, que na altura teriam 15, 16 anos, a chamada ‘idade TikTok’.” Aquelas jovens tiktokianas passavam todo o tempo dos tratamentos na clínica em estado hipnótico com o olhar perdido no ecrã dos seus telemóveis, mas a soltar sonoras risotas, o que desde logo se distingue em qualquer clínica. “Mas, afinal, do que é que vocês se riem tanto? Que plataforma é essa?” É o TikTok, Rui — responderam elas com aquele ar de gozo, próprio da idade e de quem apanha alguém na curva tecnológica, remetido imediatamente para a secção dos cotas. “Então, o Rui é tão brincalhão, sabe tanto de tecnologia e não sabe o que é o TikTok?” Assim era, meninas. “Sabia lá eu o que era o TikTok.” Hoje é o contrário. O TikTok já sabe quem ele é.
Especialidade: stress de pânico
Sabendo o que sabe hoje, tem por seguro que os utilizadores da app não são exactamente dessa idade. Há pessoas mais velhas no TikTok, assim como há pessoas
bastante mais novas, mais inf uenciáveis, mais permeáveis ao seu efeito hipnótico e a muitos dos seus perigos associados, entre os quais os desafios de alto risco, que passam pelos intervalos parentais como trends virais. Para o tiktoker ribatejano, o TikTok não devia ser assim, com estes efeitos secundários da sua globalização que, no limite, se tornam mortíferos. Rui Carlota defende a sua dama tecnológica como pode, estando igualmente consciente dos ciberperigos que grassam em plataformas como o TikTok. Com a dimensão do TikTok não há assim tantas.
O TikTok, de acordo com o tiktoker, “só não cresceu mais, pelas medidas de segurança que teve de adoptar”. E acrescenta: “Há muitas crianças que, como não podem ter conta no TikTok, usam a identidade ou a conta dos pais. Mas o TikTok é inteligente.” De certeza, Rui? “Neste sentido: percebe através dos vídeos. Bastam dois ou três e a conta é logo bloqueada.” Há mecanismos de segurança muito eficazes no TikTok, garante Rui Carlota, sem disfarçar um certo orgulho alheio.
De início, Rui pensava que se tratava de uma plataforma só para miúdos, mas as miúdas informaram-no logo que não era bem assim. O TikTok tem maior amplitude etária do que às vezes se possa pensar. Rui não estava sozinho na ignorância sobre esta app. Elas também tinham ensinado à professora o que era o TikTok. Os longos períodos de confinamento e o classroom propiciaram estas aulas invertidas de apps da moda.
Ao que consta, a professora das miúdas também aderiu ao TikTok, na óptica do utilizador. Quanto ao Rui: “Instalei o TikTok em 2021.” Coincidiu com o dito “confinamento”, que por sua vez coincidiu com a propagação planetária do TikTok. “Adorei. Fiquei viciado a fazer aquilo. Sempre gostei de criar conteúdos. Sempre tive esse bichinho. Já tinha experimentado no Instagram, mas foi no TikTok que o ‘vício’ se desenvolveu a uma velocidade furiosa.” É, aliás, uma característica dos vícios. Nesse aspecto, assim como noutros, o TikTok não é diferente do processo mental e até físico de uma adicção. Rui Carlota sabe disso. “Não tenho quaisquer dificuldades em reconhecê-lo.” Em alguns tiktokers, porém, essa consciência não é de fácil convívio. O TikTok massificou-se durante a pandemia. Rui Carlota massificou-se com ele. Nos EUA, só para exemplificar, “há perto de 200 milhões de utilizadores online diários do TikTok. Há dois anos, eram 80 milhões”.
E partiu logo para a criação de conteúdos? “Não. Passei dois, três meses, só a explorar, a explorar. Divertia-me muito. Senti o que as crianças sentem. Fiquei logo hipnotizado, até porque nessa altura o TikTok cresceu muito.” O menu tornou-se virtualmente infinito. “É rápido, é sequencial, é intuitivo.” Ou melhor, algorítmico. “Os conteúdos de vídeos que aparecem aparecem de acordo com o interesse de cada utilizador”, como um feitiço big-tech, que se move no pensamento.
Rui Carlota percebeu essa lógica e intuiu que tipo de conteúdos teria de oferecer ao mundo TikTok, com uma epifania à mistura, que o fulminou quando estava de férias. “Tinha ido à Madeira. Filmei aqueles carrinhos rolantes, que me inspirou para fazer um filme, assim como no avião de regresso, com as pessoas em stress, com o som de fundo de pessoas em pânico.” O stress de pânico tornou-se uma das suas especialidades, utilizando o mesmo método nas versões zombie. “O som, como em qualquer filme de terror, é 80% da coisa. Aliás, o sucesso do TikTok disparou a partir do som.”
Hoje, Rui Carlota já tem de ter cuidados que antes não tinha, por nem sequer pensar nisso: as músicas, os sons, têm direitos de autor. Os tiktokers com milhões de seguidores, alguns que fizeram do TikTok profissão, têm de ter estes aspectos em conta.
Depois de colocado online o conteúdo debutante (o vídeo da Madeira), talvez por inexperiência, deixou o TikTok em pousio. “Passados três ou quatro dias, fui ver e já tinha mais de 10 mil seguidores. Fiquei embasbacado.” Foi como se estreasse no tiro aos pratos acertando logo à primeira no prato principal. Como se deu o fenómeno, Rui não sabe. Podia chamar-lhe sorte. Prefere chamar-lhe intuição.
Karma police
Seja como for, tinha-o feito apenas por curiosidade. Não estava preparado para o exército de seguidores que se puseram à sua porta virtual, à espera de mais alimento. Um abuso de linguagem, já que os seguidores do TikTok — ou de outra app qualquer — não esperam, obtêm. Com 10 mil seguidores, havia tikokers como ele aos pontapés. Quieto, desapareceria no éter com a mesma velocidade com que tinha chegado. Podia não saber ainda muitas coisas da esfera TikTok, mas isso era do senso comum. Era inegável que tinha acertado em cheio na sua quota de mercado, que não o desapontou. E, a brincar, a brincadeira tornou-se séria. Isso assustou-o.
Até que um dia um especialista em TikTok, que é também formador nesta
app, lhe deu um puxão de orelhas: “Então, tu tens quase um milhão de seguidores e continuas a brincar com isto? Tens de levar isto a sério, Rui.”
Não foi como se o alerta lhe tivesse entrado por uma orelha e saído pela outra, mas andou lá perto. “Quando atingi um milhão de seguidores (número mágico), estive para eliminar a minha conta. Era muito tímido. Tanto que eu comecei no TikTok com conteúdos não originais, recriados por mim.” Mas isso é o prato do dia no TikTok. A imensidão é tanta, recriada à infinitude, que é virtualmente impossível saber o que é e o que não é original. É um depósito vivo, sem fim. “Aquilo é garbage [lixo], que nós aproveitamos para recriar.”
Rui sabe, portanto, que corre o risco de alguém fazer o mesmo com os seus vídeos. Não é por nada, “é porque é essa a lógica do TikTok”. O que explica desde logo a complexidade (ou impossibilidade) em matéria de direitos de autor. Exemplo: “Eu tenho um vídeo, desses de zombies, que tem 130 milhões de visualizações. O vídeo foi tão viral que é impossível controlar seja o que for. Sofrem transformações atrás de transformações. Não se consegue estabelecer a autoria.” Estão perdidos numa imensa multidão online. “Dá-se um cunho pessoal a uma coisa pré-existente, digamos assim.”
Mudando de assunto, ficando no mesmo. Quanto se atinge o patamar actual de Rui Carlota, de longe o tiktoker português com mais seguidores (9,1 milhões), a exposição aos riscos é enorme. “Há para aí muitos
hackers e querer a conta de outrem.” Por outras palavras: phishing. Quanto maior a dimensão de um tiktoker, maior a exposição ao risco de alguém querer entrar na sua conta para se expor à legião dos seus seguidores, para colocar os seus vídeos a navegar no sucesso de outrem. “Quando a conta é hackeada, é muito complicado, porque se entra num círculo difícil. Há pessoas a trabalhar para o
TikTok especializadas em cibersegurança na app. É uma espécie de SOS tecnológico.” Esses pedidos de socorro caem uma lista de espera gigante. “Leva bastante tempo.”
Talvez por isso “não faltem também por aí copycats, a copiar as contas de maior sucesso”. Mas, atenção, o TikTok não dorme em serviço. “Tem uma definição para bloquear esses ‘piratas’ online. O TikTok tem vindo a desenvolver as suas próprias defesas e directrizes que têm de ser cumpridas.” Tem pessoas que só trabalham neste campo, como a polícia do TikTok. “Se violares essas directrizes, há sanções: primeiro és suspenso por 24 horas, depois uma semana, depois duas semanas, depois bloqueiam-te a conta. Às tantas, és banido. Já muitos tiktokers portugueses foram banidos, muito por causa da linguagem, por dizer palavrões. Ou, em casos mais graves, que envolve conteúdos sexuais, conteúdos sensíveis, ou em que incentivam os miúdos a fazer coisas perigosas. Não se pode fazer uma coisa dessas.” Essas medidas não impedem os prevaricadores, que estão em
Eu tenho um vídeo, desses de zombies, que tem 130 milhões de visualizações. O vídeo foi tão viral que é impossível controlar seja o que for. Sofrem transformações atrás de transformações. Não se consegue estabelecer a autoria Rui Carlota
perfeita camuf agem. “Já houve pessoas que imitaram a minha conta, fizeram directos, começaram a ganhar dinheiro à minha custa. Tive de denunciar, mas é um processo que não é fácil. É uma espécie de provedoria do TikTok. Há uma estrutura que trabalha para o TikTok, sediada em Madrid.”
Rui tem um contacto directo nessa estrutura. Diz, porém, com a maior das inocências: “Não posso estar sempre a incomodá-los, que eles também têm a vida deles.” E prossegue: “Tento não violar as directrizes. A central de controlo é pequena.” Minúscula, se comparada com espectro global de tiktokers. Há que pôr as coisas na devida proporção. Rui é ainda uma gota de água no oceano transcontinental que é o TikTok. “Os meus seguidores estão em maioria no Brasil, nos EUA e também nos países asiáticos. Os brasileiros adoram o meu conteúdo.” Para desmistificar, a maior parte do conteúdo que cria (ou recria) é feito em casa. “A montagem e edição é toda feita com o telemóvel. Tenho 20 mil vídeos no telefone.” Não se pense que os vídeos nascem feitos. “Dá muito trabalho.” Na fase em que está na constelação TikTok, cada publicação rende entre 500 a dois mil euros. “Faço normalmente um ou dois vídeos por mês.”
Outra fonte de rendimento, quando um
tiktoker conquista seguidores aos milhões, são os patrocínios e os anúncios. Nesta altura, Rui Carlota admite que já é “uma marca global”. Perdeu-lhe a conta, mas já fez “mais de 60 anúncios”. “Cada vídeo, se estiver inspirado, bem-disposto e, já agora, com saúde, leva em média duas semanas.” Tornou-se selectivo também: “Ao longo do tempo, já rejeitei algumas marcas. No início, a maior parte das marcas com as quais trabalhei eram americanas.” A primeira, porém, nunca se esquece: “A primeira marca com que trabalhei foi a Licor Beirão.” Uma marca antiga, não no que diz respeito ao marketing. “Era um anúncio para o Natal. Mandaram-me um
briefing e tudo. Na altura, tinha um milhão e tal de seguidores. Esse anúncio correu muito bem. Durante muito tempo usaram o meu vídeo, o que me deixou muito orgulhoso.” Atenção: “Aquilo que muitos entendem por anúncio são patrocínios. Há uma diferença.”
No que diz respeito ao TikTok, os ventos são favoráveis. “Actualmente, o mercado está em fase de mudança. Já há muitas marcas associadas aos tiktokers, mas ainda apostam muito no Instagram. Todavia, há um grande crescimento no TikTok. É notório.”
O universo do TikTok está longe de ser um conto de fadas online. Se fosse, não precisava de investir milhões e milhões em cibersegurança, para controlar os infinitos ricochetes da sua própria natureza incontrolável — os actos de pirataria, os hackers, os copycats, uma miríade subversiva de “forças do mal”, como Rui lhes chama, que utilizam o TikTok.
Também não deixa de ser curioso que o TikTok faça aos tiktokers o que alguns países fizeram, ou queriam fazer, ao TikTok. No Verão de 2018, a Indonésia bloqueou o Tiktok, por extrema preocupação com alguns conteúdos supostamente ilegais, como “pornografia e blasfémia”. Esta sanção durou apenas uma semana, após o TikTok se ter comprometido a retirar o tal conteúdo “sensível”, adoptando medidas de segurança, assim como restrições de idade aos utilizadores. Em 2020, a Índia foi bastante mais longe, apontando baterias às
apps chinesas, com o TikTok à cabeça. Na Índia, o TikTok foi banido, assim como mais de duas centenas de outras apps vindas da China. Nos EUA, há muito que se fala em bloquear o TikTok, o que nunca chegou a concretizar-se, apesar de várias novelas à la Trump, de ameaças, avanços e recuos, durante a sua presidência.
Já agora, Rui. E sobre aquela teoria de que a China utiliza o TikTok para espionagem? “Bem, é claro que eles controlam tudo. Para começar, quando te registas no TikTok, tens de fornecer os teus dados para te credenciares. Na verdade, aquelas letras pequeninas que quase ninguém se dá ao trabalho de ler são termos de autorização para a utilização desses dados. Quem entra não pode ter esses medos. Quem é que se interessa pelo mais comum dos utilizadores escondido num cantinho de Portugal? Temos de ser realistas, não é? Ninguém.” Até pode ser que sim, como também pode ser que não. A gigantesca massa dos utilizadores do TikTok é altamente manipulável, para mais sob anonimato. A massa anónima é um exército que, precisamente com a excepção da China (entre outros), em última análise, elege governos. Não convém também esquecer que aqueles que hoje não estão em idade de sufragar estão em boa idade de inf uenciar, enquanto não são os eleitores do futuro.
O TikTok está constantemente em mudança, numa pescadinha de rabo na boca tecnológica na qual já não se percebe se acompanha as tendências, se as lança. Provavelmente, faz as duas coisas. O próprio Rui Carlota procura novos caminhos enquanto tiktoker. “O que está agora na moda é ir à rua e falar com as pessoas e fazer algumas partidas, as
pranks.” Os directos, acrescenta, são hoje uma fonte de rendimento para muitos
tiktokers. “Recebem muitos presentes, que depois convertem em dinheiro. É como um mercado paralelo dentro do TikTok.” Não faz o seu estilo. “Eu não faço directos.” Quando o tempo lhe permite, o que ele faz agora é o desmame do estilo antigo, à
Os meus seguidores estão em maioria no Brasil, nos Estados Unidos e também nos países asiáticos. Os brasileiros adoram o meu conteúdo
procura de uma nova fórmula que vai encontrando. “Este novo estilo faz-se por auscultação visual. Publica-se um vídeo, se tiver muitas visualizações, está o estilo encontrado. É assim que funciona o TikTok.”
Cada vídeo, se estiver inspirado, bem-disposto e, já agora, com saúde, leva em média duas semanas
O despertar da realidade
Há uma razão para o Rui Carlota ter a voz nasalada, que soa remotamente a uma espécie de Marlon Brando de Almeirim, versão Godfather. A vida corria-lhe tão bem. Tinha um trabalho estável, tinha casado com a mulher que ama, tinha reciprocidade, tinha descoberto o TikTok, tinha-se transformado num fenómeno nas horas vagas, ia ser pai de uma menina. Até que a vida lhe fez um wake-up call, daqueles arrasadores.
A caminhar para o final de 2020, instalara-se em Portugal o confinamento, o que obrigara a clínica D. Manuel I a encerrar provisoriamente, obrigando-o a exercer a sua profissão de técnico oficial de fisioterapia online no que era possível. Foi por esses dias que ele notou “um carocito no pescoço”. Nada que o incomodasse, na verdade. Já tinha umas “coisitas dessas nos braços”, que nunca o
O que está agora na moda é ir à rua e falar com as pessoas e fazer algumas partidas, as pranks
tinham apoquentado. Não era razão para quebrar o confinamento para se dirigir à urgência de um hospital. Os hospitais, nessa altura, tinham mais do que fazer. A sua mulher, que é enfermeira, não o deixava mentir. Ela, que estava grávida, preocupou-se mais do que ele, que estava no TikTok.
“As coisas começaram a melhorar. A clínica reabriu”, recorda. Foi na clínica que ele perguntou a um médico da sua confiança, alguém muito experiente, que coisas poderiam ser aquelas. “Ele tranquilizou-me um pouco. Disse-me que, à partida, devia ser ‘uma daquelas coisas’ que tinha nos braços, que não pareciam preocupantes.” À cautela, o melhor era fazer análises. “Até veio a calhar. Nesse dia estava na clínica a analista e o médico pediu logo que recolhessem uma amostra de sangue para fazer um hemograma. E, para ficarmos todos descansados, uma ecografia.”
Não teve de esperar muito pelo resultado das análises: “Estavam boas.” Portanto, tudo indicava que não existia nele qualquer problema de maior. Os resultados da ecografia, mais demorados, dissipariam as dúvidas residentes. “De qualquer maneira, com as análises de sangue fiquei descansado. Passou um mês ou dois e até me esqueci daquilo.” Não deu demasiada importância, até porque havia coisas mais importantes. “Nessa altura, a minha mulher está grávida de três meses e tínhamos de ir a Lisboa fazer uns exames.”
Para aproveitar a viagem, matando dois coelhos de uma só cajadada, a enfermeira sua esposa sugeriu que ele marcasse igualmente uma ecografia. “E fomos os dois à CUF Descobertas. Ela num piso, eu noutro.” Disse à mulher que não demoraria, mas não seria assim, “O médico começa a examinar-me o pescoço e eu descansadinho da vida. Só comecei a achar estranho pelo tempo que ele demorou. Um exame que normalmente se faz em dois, três minutos, demorou 20. Isto, de facto, alertou-me.” O médico era daqueles com alguma rudeza de trato e de comunicação. “Era daqueles médicos brutos, mas via-se que era um excelente médico.” E diz: “[Analisando à posteriori,] foi ele que me salvou a vida.”
À saída do consultório, só para se tranquilizar, Rui Carlota perguntou ao médico, à espera da sua reacção, um pouco como faz com os vídeos no TikTok: “Então, doutor... isto devem ser lipomas, não?” Os lipomas são tumores benignos, constituídos por tecido adiposo. Não sabe porquê, tinha-se convencido que era isso que tinha. A resposta do médico não podia ser mais dura e directa: “Lipomas... Você tem é gânglios linfáticos.”
Assim de repente, Rui não lhe ocorreu o que era isso dos gânglios linfáticos. De qualquer forma, o médico informou-o que tinha encontrado uma massa sólida e volumosa no seu pescoço. Se era preocupante? Muito provavelmente. Já teria mais de três centímetros. Na escala dos tumores, algo colossal.
E foi assim que o mundo lhe caiu aos pés. “Nunca estamos preparados para uma notícia destas. Quase desmaiava. Liguei logo para a minha mulher, que me tentou acalmar. Ela, sendo enfermeira, percebeu logo o que eu tinha.” Ele ainda andou alguns dias a “bater mal”, até se consciencializar. Depois, “foi o desenrolar das coisas”. Rui começou a encarar de frente o seu pior pesadelo, logo numa altura em que a vida, com uma filha a caminho, se maquilhava de felicidade. “Fui a um neurologista, para fazer ressonância ao pescoço e à cabeça, aqueles exames todos.” O pior não se tinha ainda mostrado: “Foi quando apareceu a neoplasia, quando se descobriu um tumor já com quatro centímetros e tal.”
A solução, disseram-lhe os médicos, era a cirurgia. “Mas esta não se apresentava fácil. O tumor estava localizado numa zona muito delicada. Não foi fácil encontrar um médico para realizar esta cirurgia. Fui a uma série de médicos. A certa altura já nem sabia a que especialidade recorrer.” Foi outra vez ao hospital, desta feita na especialidade de neurologia tornou-se clara a emergência da cirurgia. “E dos enormes riscos que esta envolvia.”
Não é palavra que Rui goste de enunciar. Soletra-a, quase em sussurro: “M-o-r-t-e.” Essa eventualidade inundou por completo a sua vida, o seu pensamento. “Foi um peso enorme que me caiu em cima. Desmoronei. É uma coisa assustadora.
Nem é definível o medo que nos passa pela cabeça.” O seu inimigo: “Um paraganglioma. Uma neoplasia rara, geralmente benigna.” Era algo não lhe trazia alívio. Não era propriamente o tumor, que evoluíra para “cerca de seis centímetros”, que mais preocupava os médicos e o doente que ele se tinha tornado. A maior preocupação tinha que ver com a delicadeza da cirurgia.
A ansiedade dominou-o por completo, aquela angústia de pensar que não veria a sua filha a crescer. Quando Laura nasceu, era assim que ele estava. “Só comecei a estabilizar quando comecei a tomar antidepressivos, o que me ajudou muito.” Era uma situação muito grave, ninguém lhe escondeu. “Nesse momento, isolei-me do mundo. Pensei mesmo que ia morrer.” Perante esse cenário, o risco de ficar sem voz parecia um mal menor. Escusado será dizer: “Abandonei o TikTok.”
Rui Carlota ainda recupera de um susto longo e de uma cirurgia bem-sucedida. A sua voz tem um novo timbre, uma sequela que veio para ficar, assim como as ocasionais dificuldades respiratórias. Mas o ponto é mesmo esse: respira. Sinal de que a vida lhe concedeu uma segunda oportunidade. E um olhar sobre todas as coisas — até as pequeníssimas coisas, que a generalidade das pessoas dão de barato — que ele não tinha.
Voltou ao TikTok, continuando os seus seguidores a crescer como a nenhum outro em Portugal. Mantém-se com o rei dos tiktokers portugueses, mas podem ter a certeza de que já não é o tiktoker que era. O TikTok instalado nele não lhe permitiu que o abandonasse definitivamente. Definitivo só a outra coisa que ele teve de enfrentar dia após dia. Contra o tiktoker fala, a favor do Rui. Há coisas bem mais importantes do que o TikTok. Uma delas é a vida. Não é uma app, mas está em constante download.
PRIMEIRA PÀGINA
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2023-07-23T07:00:00.0000000Z
2023-07-23T07:00:00.0000000Z
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