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Auditoria trava pagamentos e dívida no Brasil aumenta

Lotaria do Estado do Rio de Janeiro diz que Santa Casa está a incorrer em crimes de “apropriação indébita” e de “enriquecimento ilícito”

Sónia Trigueirão

Internacionalização

Quando começou a auditoria externa a cargo da consultora internacional BDO à Santa Casa Global (SCG) — empresa criada há três anos para levar a cabo o projecto de internacionalização no período em que Edmundo Martinho era provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) — para se perceber exactamente quanto dinheiro foi gasto e com que finalidade, as ordens foram para parar todas as operações.

A nova administração da SCML deixou de enviar mais dinheiro para o Brasil, à excepção do valor referente à prestação que a SCG tem de pagar pelo crédito de 12 milhões de euros ao Banco Santander Brasil pedido em 2021 para financiar a compra de 55% da empresa MCE e restantes negócios que levou a cabo naquele país. Sem mais dinheiro, a dívida das empresas que entretanto a SCG constituiu e adquiriu está a aumentar.

Um dos credores é a lotaria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj) com quem a MCE tem um contrato que não está ser cumprido e cuja dívida, por não pagar a venda dos bilhetes ao Estado, já ultrapassa os cinco milhões de euros, segundo contabiliza Hazenclever Lopes Cançado, presidente da entidade. Em declarações ao PÚBLICO, Hazenclever Lopes Cançado alega que, como a SCG é a sócia maioritária é a ela que a Loterj tem estado a tentar contactar para que a dívida seja liquidada.

“A nova administração diz que estão a fazer a auditoria e que até ser concluída não estão a tomar decisões. Pediram-nos informações. Na última vez que falaram connosco, a dívida era de 14 milhões de reais (cerca de 2,6 milhões de euros), mas ontem fui verificar e já vai nos 30 milhões de reais (cerca de cinco milhões de euros), com juros”, afirmou. Segundo o presidente da Loterj, como se trata de dinheiros públicos, a Santa Casa já está a incorrer num crime de “apropriação indébita, que ocorre quando alguém se apropria de bens ou recursos que não lhe pertencem, agindo de forma contrária à confiança depositada, e outro crime de enriquecimento ilícito, entre outros”.

Além desta questão, o PÚBLICO apurou que, na compra da MCE, foi acordado que o pagamento seria feito em duas fases e na segunda fase o valor seria pago em seis prestações. A última destas prestações vencia a 15 de Junho. Eram cerca de 300 mil euros, mas a SCML não autorizou o pagamento. Como o contrato prevê penalizações para incumprimentos, já há uma multa para pagar correspondente a 10% do valor em falta.

Acresce que outra penalização prevista no contrato por incumprimentos é a anulação do mesmo, o que significa que, neste momento, a SCG está também em risco de perder todo o valor já investido, cerca de cinco milhões de euros. Já quanto a São Paulo, uma das credoras é a Viacap, empresa de capitalização a quem a MCE deve cerca de 638 mil euros.

Contactada pelo PÚBLICO, a SCML não quis comentar estas questões sobre o aumento da dívida, sublinhando apenas que aguarda os resultados da auditoria para tomar mais decisões.

A decisão de levar a cabo a auditoria foi tomada depois de se conhecer um relatório sobre a SCG, datado de Abril de 2023, onde era admitido que os negócios no Rio de Janeiro e em São Paulo estavam longe do planeado e que, ao contrário do que se pensava, não seria possível obter lucros positivos no espaço do contrato de prestação de serviços que a SCG tem com a Loterj.

O mesmo documento sublinhava que o negócio estava a correr mal porque os hábitos “de jogo alteraramse, com predominância no jogo online, e, no caso do Brasil, com aumento exponencial da oferta e do consumo de apostas desportivas, num mercado ‘cinza’, onde o pagamento de impostos não existe, possibilitando às empresas que nele operam um forte investimento em comunicação e marketing que retiram visibilidade ao produto e ao programa da SGG”. Além disso, também apontava dificuldades no relacionamento com a nova directoria da Loterj.

Segundo o mesmo relatório, o valor naquela altura já efectuado nestas operações estava a chegar aos 23 milhões de euros e era necessário definir uma estratégia “para recuperar parte do investimento realizado, reduzindo a participação nas empresas”.

Instituição beneficiou da estratégia de expansão do jogo para o Reino Unido

Parceria cancelada

Pese embora o facto de a auditoria não ter terminado, a SCML tomou recentemente a decisão de cancelar a parceria com o Banco de Brasília (BRB) para explorar e operar os jogos e lotarias neste estado brasileiro, que havia sido anunciada em Abril de 2023 pelo então provedor Edmundo Martinho, pouco antes de sair.

Para a Santa Casa, esta decisão significou uma poupança de 14 milhões de euros, mas para o BRB significou ter de rever as contas. Em vez de lucro, teve prejuízos.

Fonte do BRB explicou ao PÚBLICO que o facto de o Tribunal de Contas do Distrito Federal ter determinado a suspensão do negócio e ter solicitado esclarecimentos sobre a sua competência no âmbito da exploração de jogos sociais e lotaria fez com que houvesse um incumprimento do contrato para com a Santa Casa. “Esse incumprimento desvinculou a Santa Casa do negócio. Quando o BRB pediu um adiamento à Santa Casa, em vez de cancelar o negócio, a instituição podia ter aceitado o adiamento sem compromisso. Ou seja, em vez de cancelar, adiava a decisão para mais tarde porque já não estava obrigada a investir e só investia se achasse viável. Os 14 milhões eram para pagar ao longo de sete anos”, explicou a mesma fonte. O facto é que ainda não há decisão do Tribunal de Contas e o BRB continua com o negócio bloqueado.

Há, no entanto, uma situação em que, mesmo sem querer tomar decisões, a Santa Casa está a facturar. A internacionalização da SCML começou no Reino Unido, muito antes até de existir a Santa Casa Global (SCG). Para fazer saber que a SCML estava interessada em entrar no mercado estrangeiro, a instituição entrou na corrida para conseguir a licença da Camelot, a lotaria do Reino Unido. Terá sido um teste apenas, mas serviu para que a SCML viesse depois a ser convidada para fazer parte da Ainigma Holdings.

Inicialmente, a Ainigma estava sediada na ilha de Man, um paraíso fiscal, mas quando a SCML entra com a SCG na sociedade esta já estava sediada no Reino Unido. Aliás, é através desta Ainigma que a SCG depois investiu na Ainigma Holding Services, que assegurou o desenvolvimento da plataforma utilizada pela Nexlot, operador de lotarias, com quem investiu no Peru.

Acontece que já este ano os sócios da Ainigma Holdings contactaram a SCML para fazer parte de uma assembleia geral de sócios para decidir sobre a venda de 20% do capital a outro investidor. Apesar de a SCML não ter participado, a venda foi decidida, o que originou uma valorização do capital da empresa, beneficiando todos os accionistas.

Destaque Plano De Reestruturação

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2023-11-20T08:00:00.0000000Z

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