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O e rindo

si ou com a realidade), como na velha anedota de que se houver uma galinha para dois, mesmo que um coma a galinha inteira e ao segundo lhe doa a barriga da fome, o resultado estatístico é que cada um terá comido metade do volátil.

O paradoxo do aumento dos 70% em tempo de sanções, independentemente da plausibilidade maior ou menor dos argumentos que o cubram de razoabilidade, parece enquadrar-se — e isto sem espinhas — naquela categoria de absurdos de que o melhor exemplo talvez seja a memorável sentença de Luís Montenegro proferida das bancadas de São Bento para o mundo, eram os tempos da Troika: “A vida das pessoas não está melhor, mas a do País está muito melhor”.

Convenhamos que como amostra de refinamento retórico é muitíssimo fracote, nem de perto nem de longe conseguindo bater o saudoso José Sócrates — já que falámos de Troika — e a sua assinalável destreza no manejo da lógica aristotélica: “Mário Soares é um patriota, gosta de Camões. Eu gosto de políticos que gostam de Camões. Eu gosto muito do doutor Mário Soares”.

Vai buscar Boris Johnson!

Acrescente-se que a opinião então defendida por Montenegro — e o mesmo pedigree se pode atribuir à fezada de von der Leyen, comunicada pela própria em Maio último, de que a guerra na Ucrânia e a escassez de gás russo, apesar do fumo do carvão ter voltado aos céus da Europa, acabarão por nos tornar a todos mais verdes — não tem nada de original. O apelo ao sacrifício a troco de um hipotético futuro melhorado — versão sofisticada da historieta popular do burro e da cenoura ou do céu que nos espera pós-morte — era um princípio, no caso estético e não ético ou sequer religioso, de uma tia minha, mulher destemida que costumava dizer: “Quem quer ser bonita, deixa-se esfolar”. Nem sempre resulta.

Dizia pois que o Outono está garantido. Apesar de a chuva ter sido ainda escassa por aqui, os campos apresentam-se mais limpos, lavados do pó, e mais leves, amortecido o peso do calor.

Quadro a que parece ter-se restaurado a cor original, à beira dos caminhos brilham ao sol as folhas miúdas das romãzeiras, como que enceradas, e os seus galhos e troncos de aparência frágil vergam-se com a elegância do bambu ao peso de pomos bem redondos que combinam de forma inesperada uma casca coriácea e bagos cor de rubi. A árvore despir-se-á depois completamente no Inverno, para ressuscitar em pinceladas de verde na próxima Primavera. No que respeita ainda à fruta local, os marmelos pendem dos marmeleiros sobre os muros. Ainda não estão maduros e a sua rusticidade nunca deixaria adivinhar a beleza delicada das flores brancas que os antecederam.

As videiras declinam. As uvas já prensadas à espera do São Martinho, restam as parras. Mudaram de cor e ganharam uma tonalidade dourada, a combinar com a luz do Outono. Começaram a secar e vão caindo encarquilhadas, produzindo um ruído metálico sob os pés. No Inverno, converter-se-ão ao silêncio. O mesmo das figueiras.

Não fora a secura da barragem e dir-se-ia um ano igual aos outros. Mas a barragem está lá, nua, posta a descoberto, o recorte das margens modificado pela ausência de água. Avista-se da estrada, deixando perceber pequenas ilhas de terra escura habitualmente submersas. E o cenário de morte que uma barragem sempre evoca, foi acentuado pela seca.

“Vai comprar flores para o quintal? Não se pode comprar flores. E depois água para regá-las?”, diz-me o homem, ele colhendo beringelas e eu a bisbilhotar as couves do caldo-verde.

Lembrei-me de Flaubert, do inacabado Bouvard e Pécuchet, (trad. Pedro Tamen, Cotovia, ed. de bolso, 2015), a sua “enciclopédia da estupidez humana”, da cena em que os dois, acabados de chegar de Paris e já cativos da calma da província, inspiram o ar puro, sentam-se para jantar, regalam-se com uma sopa de cebola, galinha, toucinho e ovos cozidos e, findo o repasto que consideram divinal, embora seja já meia-noite Pécuchet sugere que visitem a horta. Bouvard aceita e lá partem os dois à luz das velas a admirar os legumes, não resistindo em nomeá-los em volta alta: “Olha: cenouras! Ah! as couves!” Ou de como duas simples exclamações bastam para fazer passar o ridículo de uma cena. Evidentemente, não é Flaubert quem quer ou pode. Só mesmo o próprio!

Por falar em ridículo, fiquei a saber pelo nosso ministro da Administração Interna, cujas declarações pude ler há dias neste jornal, que no âmbito do estudo e combate aos fogos florestais começou a funcionar entre nós uma subcomissão que “vai aplicar a metodologia da NATO para analisar os dados dos grandes incêndios”, cujo nome — juro! — é

“Comissão das Lições Aprendidas” (comissão, subcomissão, who cares?).

Acho que nem a Jaroslav Hasek ocorreu nome tão patusco.

Fogos. Seca. A seca e o excesso de chuva. Um terço do Paquistão debaixo de água, 33 milhões de pessoas afectadas pelas cheias. Sherry Rehman, a ministra paquistanesa para as Alterações

Climáticas falou em “cenário apocalíptico”. António Guterres, entrevistado na qualidade de secretário-geral da ONU, garantia há cerca de uma semana que face à necessidade de “uma redução de emissões de 45% até

2030, a perpectiva é de um crescimento de 14%”. E rematava: “Caminhamos para o desastre”.

E eu a pensar que caminhávamos para a Crimeia.

Música

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2022-09-23T07:00:00.0000000Z

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