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Tão democrática, a cultura

António Guerreiro

“Não sei o que é a alta cultura ou cultura erudita”, declarou o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, ao iniciar um percurso pelos movimentos culturais urbanos que germinam e crescem fora dos lugares onde se constroem os consensos sobre a “autêntica” cultura e à margem de quaisquer protocolos de legitimação. Se esta afirmação fosse feita no âmbito de uma teoria ou de uma “ciência” da cultura, o seu pressuposto seria a ideia de uma democratização da cultura; dita por um ministro da Cultura é uma asserção que confirma o que é hoje, obrigatoriamente, a política cultural: uma política que tem de satisfazer o princípio das nobres intenções da cultura, da sua lógica expansiva e do seu poder de homogeneização; uma política em que ninguém se pode sentir insultado por aquilo que o ultrapassa e que não pode dar razão a denúncias de “elitismo” nem a críticas de populismo. Um ministro da Cultura está assim condenado a mover-se como um equilibrista, de tal modo que até no preciso momento em que empreende uma visita às manifestações da “baixa cultura” ou do que outrora foi uma “contra-cultura” (mas agora já não pode aspirar a sê-lo) o que precisa de nomear através de uma frase negativa é a “alta cultura”.

A cultura é o território da fluidez generalizada. E é a esta democracia hidráulica (estranha a qualquer outro sector da governação) que se dá hoje o nome de “política cultural”. Por isso é que a pasta ministerial da Cultura é tão difícil de gerir. A utopia de uma sociedade sem classes não se realizou. Mas no vastíssimo território da cultura todos — os da alta, os da baixa, os da mediana — estão na companhia uns dos outros e formam uma massa planetária. O ministro Adão e Silva não disse nada que possa ser considerado revolucionário ou intempestivo: a alta cultura e a cultura de massa cofundem-se e cada vez mais o gosto das elites passou a coincidir com o gosto das massas.

A cultura, escreveu um grande poeta e crítico cultural, Hans Magnus Enzensberger, é como diluir um Alka-Seltzer num copo de água: a pastilha desaparece, deixamos de a ver, mas tem um efeito qualquer. Na configuração da democracia hidráulica que o ministro da Cultura assumiu como programa pessoal (mas que é na verdade, com mais ou menos retoques ou desvios ou modalizações, a única política cultural possível no nosso tempo, que não é do Malraux), a crítica da cultura perdeu as sua próprias condições de possibilidade. A crítica da cultura, que gozou de um enorme prestígio ao longo do século XX, até ao final dos anos 70, alimentava-se essencialmente de duas fontes: a ideia de que a cultura era um instrumento ideológico que era necessário “desmitificar” (e foi assim que muitas vezes se deitou fora o bebé com a água do banho): logo, a crítica da cultura era ao mesmo tempo crítica da ideologia; e a ideia de que a alta cultura como referência se opunha radicalmente (e reivindicava um valor qualitativamente superior) à cultura de massa. Crítica da sociedade e crítica da cultura eram, de certo modo, a mesma coisa. O tempo em que o ministro da Cultura pode dizer, com alguma pertinência e sem sombra de provocação nem de escândalo, que não sabe o que é a alta cultura ou cultura erudita, é aquele em que a crítica da cultura já não existe e todo o potencial crítico da cultura é anulado, já não por causa de uma nefasta dominação da “indústria cultural”, identificada e analisada nos seus mecanismos pela Escola de Frankfurt, mas precisamente porque triunfou um consenso cultural que absorve com grande eficácia até aquilo que deveria provocar atrito.

A crítica da cultura não era apenas uma “disciplina” dotada de métodos e ferramentas analíticas — era também um processo imanente que punha a cultura a suspeitar de si própria: sair da cultura, em vez de entrar nela, era o grande desígnio dos escritores, dos poetas, dos artistas. Toda a política cultural, mesmo a mais bem intencionada do mundo, mesmo a levada a cabo por ministros cultos e competentes, não pode ser mais do que um sector administrativo de um território privilegiado e mais ou menos inofensivo de cujos confins não se sai. O ministro pode dizer que não sabe o que é a alta cultura ou cultura erudita. Tal como ele, já ninguém sabe, mas não é coisa digna de se festejada e promovida sem reservas porque está carregada de sintomas muito pouco saudáveis.

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2022-09-23T07:00:00.0000000Z

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