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Carlos Pereira* O fantasma de Bergman

continuidade de tempo e espaço, uma das demonstrações mais concretas (e sublinhamos, concretas) que é possível ter da desumanidade, frieza e deliberação do pensamento nazi. No registo sobriamente didáctico do filme (um didactismo plenamente justificado, porque a memória se apaga, a extrema-direita ressurge, e as palavras se banalizam — como se vê pelo uso abundante e disparatado do epíteto “nazi” nos últimos meses), só há um reparo fazer face à versão 1984, e que provavelmente é fruto dos tempos: a necessidade de ter actores “feios” a exsudar maldade em cada poro do rosto, como se houvesse pouca confiança na abjecção das palavras e ela tivesse que ser reforçado por uma espécie de expressionismo.

Fora isso, ou mesmo com isso, é realmente um objecto didáctico, o tipo de filme que um professor de liceu devia levar os alunos a ver (se não se achasse agora que os miúdos devem ser protegidos de tudo e, claro, se os currículos de História no liceu chegassem ao século XX).

Adormecemos ao som das ondas em Skrivstugan, a cabana onde foi filmada a cena da reconciliação entre Johan e Marianne em Cenas da Vida Conjugal (1973). Na manhã seguinte, uma visita guiada em Hammars, a casa de Ingmar Bergman, onde vamos poder trabalhar durante as próximas quatro semanas. Há outros convidados, de diferentes países, da área do cinema, da música, da literatura, da investigação — fomos todos escolhidos para uma residência no The Bergman Estate on Fårö. O objectivo é sermos inspirados pelo encanto natural e selvagem da ilha e pelos lugares onde Bergman viveu e trabalhou durante mais de 40 anos. O meu foco é a escrita do argumento da minha primeira longa- metragem, que será produzida pela Academia Alemã do Cinema e Televisão de Berlim.

Escondida num canto da ilha, Hammars é a casa mais serenamente bonita em que vivi e aquela que até hoje melhor se entrelaçou com a minha vida interior. Duvido se será uma casa ou uma ideia. Talvez seja até um outro planeta dentro deste, com janelas pouco interessadas na realidade e que não nos permitem olhar para nada mais que o mar Báltico e alguns pinheiros. Os poucos móveis são os mesmos que Bergman deixou, as paredes de madeira envolvem-nos num conforto incomum e a luz invade toda a casa com excepção do quarto, o único lugar onde há cortinas.

Tudo é elegante, simples, funcional. Há uma divisão inteiramente dedicada à sua colecção de VHS: o primeiro título que os meus olhos encontram é Ordet (1955), de Dreyer, o segundo Solaris (1972), de Tarkovsky. Bergman gostava de escrever nos móveis: na sua mesa de cabeceira há várias notas e rascunhos, entre eles a palavra Saraband; na porta do seu escritório, uma misteriosa cronologia desenhada com corações e outros símbolos — sobre o número 95, o ano da morte de Ingrid von Rosen, a sua mulher, há uma cruz.

O tempo, passado entre o trabalho em Hammars durante o dia e a descoberta da ilha ao fim da tarde, rapidamente se transforma numa rotina. Gosto sobretudo de escrever no escritório de Bergman, onde, embora sinta estranhamente a sua presença, ou talvez precisamente por causa disso, as ideias me parecem claras e fluidas. É um espaço onde o centro gravitacional é o silêncio, trabalhado acusticamente para que não haja qualquer interrupção da nossa concentração e linha de pensamento. Ao longo das semanas descubro outra divisão onde gosto de passar o meu tempo: a sala de meditação, ao fundo da casa, iluminada por quatro janelas com vista sobre o mar e onde Bergman gostava de contemplar o nascer do dia.

Na parede, um sublime retrato a óleo de Ingrid, vestida de branco, de braços cruzados, com um olhar vigoroso e intenso com o qual me cruzo constantemente durante o processo de escrita. Bergman disse com frequência não acreditar na vida depois da morte, afirmando que um pensamento de finitude que lhe dava uma imensa segurança, mas a

sua percepção terá mudado após a morte de Ingrid, aos 65 anos, de um cancro no estômago. Desgastado pelo luto, Bergman começou a visitar regularmente a igreja de Fårö, a sentir a presença de Ingrid na casa e a acreditar que, quando morresse, a iria voltar a ver. Max von Sydow, actor de Bergman, contou numa entrevista que o cineasta lhe prometera enviar um sinal, postumamente, para comprovar a existência do além. Sem elaborar, Von Sydow confirmou que o espírito de Bergman o tinha contactado várias vezes, tendo as suas dúvidas e existência agnóstica sido substituídas pela crença numa vida após a morte. Também Liv Ullmann, a mais conhecida actriz da obra do realizador, disse que este lhe apareceu como um pássaro na janela de um quarto de hotel. É impossível estar em Hammars sem nos sentirmos permanentemente sob o signo de Bergman, ao lado do seu fantasma, a habitar uma memória que é simultaneamente individual e coletiva.

Como num sonho, ou como na montagem fílmica, movimentamo-nos de fragmento em fragmento. Em Dämba visitamos três vezes o cinema privado de Ingmar Bergman, uma sala com quinze lugares construída num antigo celeiro. Duas vezes por dia, às três da tarde e às oito da noite, Bergman dirigia-se ao seu cinema para ver um filme. Em Busca da Verdade (1961), o filme primogénito que rodou em Fårö e com o qual começou a sua relação com a ilha, é o primeiro que (re)vemos. Bergman queria originalmente filmar nas ilhas Orkney, na Escócia, mas convenceram-no a fazer uma repérage na ilha sueca. Foi amor à primeira vista, tendo encontrado nas suas idílicas paisagens a expressão cinematográfica que procurava e um lugar para viver. É inesquecível a cena em que Karin, interpretada por Harriet Andersson, confessa que Deus lhe apareceu na forma de uma aranha. O segundo filme escolhido é A Máscara (1966), também filmado em Fårö e com um dos travellings mais encantatórios da história do cinema. Nunca o filme me

grupos e projectos a que se dedicavam conseguia ombrear em interesse artístico e popular com os At the Drive-In e os Mars Volta. Felizmente, nesta decisão de regressar, Bixler-Zavala e Rodríguez-López não se puseram a assobiar para o ar e a fingir que nada se havia passado nestes nove anos de hiato. Pelo contrário, têm repetido nas declarações públicas acerca do seu regresso que “a coisa mais revolucionária” que poderiam fazer “era um álbum pop”. Assim se explica, de uma só penada, The Mars Volta. “Estamos a caminhar para o final dos nossos 40 anos”, explicou Omar ao site The Quietus, “e não podemos continuar a fazer a mesma merda, ou continuar a usar a mesma velha t-shirt que já não nos serve.”

E não há que enganar. Assim que se escutam os primeiros minutos do álbum homónimo, entregues ao tema Blacklight shine, nem sinais de qualquer ímpeto prog-rock ou de guitarras e baterias chocalhadas e em picos de ansiedade juvenil, à semelhança do que acontecia com frequência no passado. The Mars Volta é, de facto, um disco de canções alinhado com um perfil pop, com uma secção rítmica muito mais sintonizada com o r&b contemporâneo e com a pop latina de hoje do que com qualquer sub-género de rock anguloso. Blacklight shine aponta logo nessoutra direcção com as percussões latinas, as melodias vocais açucaradas e o refrão que se podia imaginar no psicadelismo tropical dos chilenos Astro. É a primeira das grandes canções que se repetem por todo o disco, por vezes, como acontece logo em seguida com Graveyeard love e Shore story a passear nas proximidades do hard-rock de finais dos anos 80 (graças, em boa parte, ao registo agudo da voz de Bixler-Zavala, aqui e ali a fazer pensar o que poderia ter sido de Sebastian Bach, sim, o dos Skid

Row, se tivesse seguido por caminhos menos forrados a napa e cabedal).

Se Graveyard love atira bem lá para cima na escala de Robert Plant a habilidade dos Mars Volta para criarem óptimas canções que não acabam afogadas pela instrumentação a eclodir à sua volta (neste caso, sintetizadores em voos picados, guitarras a controlar-se para não saírem da sua tensão controlada e não descambarem em rebentações orgásmicas), é talvez em Vigil que o grupo vai mais longe na sua nova pele, recuando até uma sonoridade que poderíamos, numa perspectiva arqueológica, identificar como pertencente ao período T-Rex / Hanoi Rocks. Ou quando em Que Dios te maldiga mi corazon deixam que pedaços de um bolero cubano se infiltrem numa canção de perfil rock, ou em Cerulea, Flash burns from flashbacks e sobretudo No case gain permitem que uma natureza mais r&b e soul agarre as rédeas e leve o grupo para paragens imprevistas para quem conhecia os pontos de cozedura dos Mars Volta.

Num possível lugar de encontro entre passado e presente, The Mars Volta encerra com The requisition, mais uma canção reminiscente do rock dos anos 70 que não causaria escândalo num disco dos Led Zeppelin, mas que, aos poucos, vai colhendo trejeitos mais sombrios e prog, como se depois de tanto namoro pop-r&b Bixler-Zavala e Rodríguez-López já não fossem capazes de continuar a manter sob sedação a sua tentação de complicar e cedessem um pouco àquilo que o instinto lhes ordena. Quando se cala, The Mars Volta deixa-nos perante um bom regresso, mas alimentado (e talvez um pouco limitado) pelo conflito entre ser uma e outra coisa. Entre a vontade de cortar amarras com o passado e saltar sem medo para o futuro.

Cinema

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2022-09-23T07:00:00.0000000Z

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