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Fogo de vista

Uma história das cités francesas filmada como se fosse um teledisco virtuoso com câmaras a rodopiar, que se reivindica tragédia mas não sabe como lá chegar. Jorge Mourinha

Athena

Athena

De Romain Gavras

Com Dali Benssalah, Sami Slimane, Anthony Bajon

Em streaming

Ainda ecoa a estreia do filme de Romain Gavras no Festival de Veneza no princípio deste mês, e já o podemos ver na Netflix, que o financiou e está a distribuir

tinha deixado tão siderado no seu desespero cristalino, na sua fusão de corpos, no seu auto-arruinamento. Para a sessão junta-se a nós um dos filhos de Bergman, Ingmar Bergman Jr., que nos conta, entre outras coisas, que o pai o tentou persuadir a interpretar o papel da criança em O Silêncio (1963). Recusou. Na última semana, um visionamento de Vergonha (1968), o filme de guerra que ocineasta rodou na ilha, transformada em pano de fundo de um pesadelo. No final de cada sessão uma paralisia toma conta da sala, demorando alguns minutos a ser quebrada.

A natureza de Fårö parece quase inexplorada. É maravilhoso contemplar as invulgares formações geológicas em Langhammars, nadar ao lado das inofensivas medusas em Nordersand ou observar os ainda visíveis troços do Fortuna, um navio alemão que afundou perto da costa, durante uma tempestade, no Outono de 1969. O tempo parece ter parado ou, pelo menos, ser medido de forma diferente. Uma das razões talvez seja o facto de, até aos anos 90, devido à Guerra Fria, uma instalação militar do governo em Fårö e no norte de Gotland ter proibido em absoluto a entrada de estrangeiros no território. Até mesmo a Tarkovsky, que quis rodar O Sacrifício (1986) nas utópicas paisagens de Fårö, o acesso foi negado, tendo acabado por filmar mais a sul. Aqui, nesta ilha remota cheia de morangos silvestres, ovelhas de lã preta e cinza e rochas esculpidas pela idade do gelo, é verdadeiramente possível sentirmo-nos isolados do mundo tenso e hostil em que habitualmente vivemos — talvez seja esta distância que nos permite pensá-lo.

Uma tarde, ao passar pelas sombras do quarto de Bergman, paro e olho para o tecto por cima da sua cama, o mesmo que terá visto todas as manhãs ao acordar e durante as noites de insónia assombradas pelos seus demónios, que tantas vezes mencionou e a quem atribuiu nomes. Há filmes que nos ensinam a morrer, e os filmes de Bergman sempre foram um confronto com a morte. Volto a aperceber-me de como o cinema precisa da materialidade para falar do invisível: uma cortina ondulante para mostrar o vento, um corpo ferido como prenúncio da mortalidade, uma parede erodida como evidência da passagem do tempo, um quarto vazio como representação da ausência. Continuamos, todos, à procura do que não se vê, de imagens e sons impossíveis que ecoem o que sentimos.

No último dia, antes do regresso a Berlim, a ilha parece anunciar o fim do Verão. O céu e o mar fundem-se num cinzento fúnebre e a respiração insular parece ter mudado: o ruído do vento e das ondas, violentamente omnipresente, esmaga-nos numa colossal inquietude que antes apenas subtilmente tinha emergido. A temperatura desce, as árvores ameaçam cair. Pedem a todos os residentes que, como epílogo da sua estadia, escrevam algumas palavras no livro de visitas. Escrevo: “I leave Fårö with a renewed belief in the afterlife and the conviction that God is a spider”.

Cinema

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2022-09-23T07:00:00.0000000Z

2022-09-23T07:00:00.0000000Z

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