Público Edição Digital

Mais tristeza do que alegria na vida do interior português

Uma espécie de fábula exemplar que pedia outra violência, outra chama, outra complexidade no tratamento das personagens. Luís Miguel Oliveira

Restos do Vento

De Tiago Guedes

Com Albano Jerónimo, Nuno Lopes, Isabel Abreu

Em sala

Restos do Vento nasce de um argumento assinado por Tiago Guedes e Tiago Rodrigues, e isso coloca-o ao mesmo tempo na sequência de Tristeza e Alegria na

Luís M. Oliveira

Vasco Câmara

Vida das Girafas (também fruto de uma colaboração dos dois) e de A Herdade, com quem partilha o produtor, Paulo Branco, e a ambientação na ruralidade portuguesa. Mas a ruralidade contemporânea, sem sombras do pequeno “viscontianismo” de A Herdade e do seu olhar sobre a decadência do antigo regime medida através do destino de uma família de latifundiários.

De modo mais imediato do que nesse filme, Guedes descobre aí uma violência, cíclica e hereditária, como uma espécie de abuso perpetuado de geração em geração. A primeira sequência, talvez a melhor do filme (com a sua estrutura circular, as máscaras e os capuzes, os rostos assarapantados dos miúdos ainda antes de se tornarem em “personagens”), é como uma introdução prática a esse tema, os corpos tenrinhos dos adolescentes a fazerem-se depositários das culpas (reais ou imaginárias) dos pais, ao mesmo tempo que a questão, pelas festas tradicionais que justificam as máscaras, os capuzes e a violência (o vento que “vem misturar o certo e o errado”, como diz mais ou menos a cantilena escutada no filme), é inserido num ciclo vastíssimo e de origens imemoriais (é a “tradição”, chamemos-lhe).

Anunciado assim, com exactidão e alguma contundência, aquilo a que o filme vem, é pena que depois dessa introdução Restos do Vento se conforme a ser uma ilustração dos seus pressupostos, através de uma espécie de fábula exemplar (ou quase uma parábola) que pedia outra violência, outra chama, outra complexidade no tratamento das personagens — que funcionando em “maquette” das hierarquias e relações de poder de boa parte do interior português (o empresário de Nuno Lopes) pecam por ser monodimensionais, silhuetas que são só uma coisa e não transportam nenhuma contradição dentro delas apesar da vivacidade com que os actores as interpretam (o GNR de João Pedro Vaz será porventura a mais rica e mais viva), e que nalguns casos, como no da personagem de Albano Jerónimo (o “Cristo” desta história), ficam presas dentro duma tipificação que as reduz a um estatuto utilitário, mero artifício narrativo sem verdadeira vida para além do simbolismo esquemático que tem por função representar.

Quase nada tem a força, nem “bíblica” nem “telúrica” (ver, por exemplo, tão cinzenta que é a cena em que Nuno Lopes vai alvejar os cães vadios, que podia ser a expressão de uma violência primordial, descentrada e irracional), que se adivinha que devia ter. Perante esta dificuldade em “encarnar”, o filme opta pela ilustração, e fá-lo com alguma coerência e, sobretudo, serenidade q.b., sem nenhum histerismo na forma de usar as tintas do “realismo”, e pontualmente com um uso inteligente do ritmo (que ora atrasa, retardando a entrada no assunto desta ou daquela cena, ora acelera, deixando alguns diálogos e situações numa elipse quase sempre justa) a compensar um pouco a quantidade de cenas em que há muito mais exposição narrativa do que pulsação de cinema.

Cinema

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2022-09-23T07:00:00.0000000Z

2022-09-23T07:00:00.0000000Z

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