Público Edição Digital

Filmes de família

Daniel Ribas

Nanook of the North éo “princípio” mas também o “Äm” do documentário enquanto proposta de um olhar autêntico sobre a complexidade do mundo.

Todas as histórias do documentário têm, pelo menos, um ponto em comum: citam a estreia de Nanook of the North, do norte-americano Robert J. Flaherty, estreado em 1922, como o “nascimento do documentário”. Flaherty, de facto, propôs, nesse e noutros filmes, uma ideia de filmar com proximidade determinadas comunidades, construindo narrativas documentais em espaços geográficos adversos, e compondo um retrato, muitas vezes romântico, dos rituais de povos tão distantes como os Inuit no Quebeque ou os habitantes da ilha de Savaii (Moana, 1926). Nanook comemora, este ano, o seu centenário, ponto de partida para repensar a prática documental e o papel desse filme aos olhos (muito distantes) do nosso tempo contemporâneo.

Foi a partir desse acontecimento que irradiou a programação do Doc’s Kingdom — Seminário Internacional sobre Cinema Documental (1-6 de Setembro, Arcos de Valdevez), cujo modelo de programação é o famoso Flaherty Seminar, criado por Frances Flaherty, viúva e colaboradora de Robert J. Flaherty. Ambos se organizam à volta de sessões de cinema e debates, criando um espaço de leitura, compreensão e discussão do cinema documental contemporâneo. Em 2022, para além deste centenário, o Doc’s Kingdom propôs uma viagem pelos trabalhos de Mariana Caló e Francisco Queimadela, Alexandra Cuesta, Paula Gaitán, Boris

Lehman e João Vieira Torres, sob o tema Gestos e Fragmentos, programado por Amarante Abramovici e Nuno Lisboa. Depois da imersão nas discussões daqueles dias, tentaremos acentuar as contradições inerentes ao filme documental a partir de Nanook e também desvendar a forma como as suas polémicas e controvérsias são, afinal, o motor do documentário, mesmo nas suas formas mais contemporâneas.

Num dos filmes mais comentados do seminário — Babel — Lettre à mes amis restés en Belgique (1991) — o cineasta e protagonista do filme, Boris Lehman, declara que filma as coisas que estão a desaparecer. É uma frase que culmina as mais de seis horas de duração deste terno e contraditório filme sobre o próprio realizador e a impossível obra que está a fazer. Mas é também uma frase que ilustra o próprio acto de filmar: o registo de imagens e sons de uma realidade que está a sempre a escapar-nos, e que, por isso, como que desaparece quando é filmada. É talvez o contexto ideal para olhar para Nanook hoje, e as complexas elaborações entre o “retrato” de uma comunidade e a sua autenticidade etnográfica. Sabemos bem que os Inuit já não viviam da forma que são retratados; nem sequer as práticas de caça eram aquelas. Mesmo havendo verdade nessas críticas — as armas de fogo, por exemplo, eram já comuns —, a proposta de Flaherty é radicalmente diferente: criar uma cumplicidade com aqueles que filma, sempre a partir da sua posição, enquanto homem branco de um determinado contexto cultural (muitas vezes, os filmes dizem também muito sobre quem os realizou).

A ficção de Flaherty é, assim, uma elaboração de uma comunidade “em desaparecimento”, mas que é, ao mesmo tempo, um olhar sobre algo que vai muito mais além dessa comunidade e que se centra, no fundo, sobre as relações humanas. Flaherty terá dito, sobre si, que era mais um “explorador” do que um “artista”, e é dessa ambiguidade que Nanook se preserva como um exemplar do seu tempo. É também um filme plasticamente elaborado, num momento em que a técnica do cinema sofria constantes transformações (neste caso, o uso de lentes telefoto, permitindo uma relação mais íntima com as personagens). Mas mais do que esse potencial técnico, havia em Flaherty (e em Nanook) aquilo que o teórico alemão Siegfried Kracauer identificou como o “fluxo da vida”, isto é, um interesse pela família e as suas práticas diárias como núcleo central da vida em comum, assim como a resiliência contra as dificuldades impostas pela sociedade moderna. A família como tema espelhava também a relação familiar de Robert com a sua mulher e colaboradora, Frances, e as suas filhas.

De facto, sente-se em Nanook uma espécie de fascínio pelo lado mais físico e exigente da existência humana, num contraste com o progresso da modernidade. Mas, para Flaherty, as comunidades que filmava não eram menores ou menos conhecedoras das práticas do mundo. Por isso, se há uma força invisível em Nanook, ela está na admiração profunda pelos homens e mulheres que retratava. Também nesse sentido, o filme demonstra uma eterna luta — que é filmada com compaixão — entre o homem e natureza, que Flaherty respeita na sua imensidão e beleza.

O centro do cinema de Flaherty, a partir das suas próprias vivências e relatando o mundo na sua visão subjectiva do real — uma visão, como dissemos, quase romântica — é também o centro de um certo cinema contemporâneo, que procura revelar o real através da sua lenta observação e das suas próprias contradições. São essas subjectividades que emergem no cinema de Alexandra Cuesta, João Vieira Torres, Paula Gaitán ou Boris Lehman. Se, no último caso, os filmes que assistimos são também uma forma de contestar o cinema das novas vagas europeias, colocando o realizador no centro do seu próprio filme e questionando as suas formas de produção, nos outros casos, nota-se uma vontade de olhar o mundo com delicadeza, mas também na sua complexidade, a partir do lugar subjectivo do cineasta, um lugar que se assemelha ao espaço familiar. Cuesta e Vieira Torres são disso exemplo, demonstrando também a vitalidade do cinema latino-americano e da sua negociação com o real.

Em Alexandra Cuesta, na série Notes, Imprints (On Love) (da qual vimos as duas primeiras partes, ambas de 2020), nota-se como as pequenas subtilezas do real são expostas em imagens elementares, como a entrada de luz dentro de uma casa ou o gesto simples de pentear o cabelo. Para Cuesta — e isso é também evidente na sua única longa-metragem, Territorio (2016) —, o cinema é uma máquina sobre a qual aprendemos a olhar-nos e a esquecermo-nos, isto é, os seus filmes marcam momentos no tempo: uma paixão, uma relação familiar, ou uma comunidade e os gestos quotidianos. São filmes a dois tempos: lugares de promessa de um olhar de amor, mas também filmes sobre a iminência do desastre ou da violência. Onde o real existe num equilíbrio instável.

É, aliás, nessas violências em potência que os filmes de João Vieira Torres se instalam, mostrando os sistemas afectivos, mas também políticos, que as nossas subjectividades são obrigadas a negociar. Crianças Fantasma (2016) é disso bom exemplo, pela forma como a televisão ocupa um lado central na formação do nosso imaginário, e das contradições que esse imaginário propõe (tanto numa forma libertadora, pelo seu lado afectivo; como castradora, por impor uma normalização). Mal di Mare (2021), por outro lado, apresenta-se como um acto performático, discutindo uma necessária praxis decolonial através da posição negra no contexto do norte global. Uma posição que é historicamente precária. Vieira Torres tem uma obra ambivalente, entre um afecto familiar e um lugar de desconforto — ao contrário, por exemplo dos filmes de Lehman ou Cuesta. A frase final de Mal di Mare — “How many people of color are in this room?” — ecoa um gesto político pela visibilidade daqueles que estiveram sempre o lado errado da História.

A discussão propiciada pelo visionamento destes filmes foi profícua e intensa, porque eles também nos desafiam a rever os nossos princípios pelos quais estamos no mundo. Tanto do ponto de vista formal como político, foi um seminário intenso e provocador, obrigando-nos a regressar à arena pública — os espaços de debate — para contestar e discutir os nossos modos de vida. Pelo menos naqueles dias, o cinema foi o motor dessa discussão. Vale a pena voltar a Flaherty para terminar: Nanook é, talvez, o “princípio”, mas também o “fim” do documentário enquanto proposta de um olhar autêntico sobre a complexidade do mundo; ele demonstra que a verdade interna de um filme surge da sua capacidade de performar o real, nas suas mais complexas contradições.

Primeira Página

pt-pt

2022-09-23T07:00:00.0000000Z

2022-09-23T07:00:00.0000000Z

https://ereader.publico.pt/article/281702618579100

Publico