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Cuidado com essa puta hitleriana

Vasco Câmara

Foi impressionante ver World War III no Festival de Veneza juntamente com No Bears, de Jafar Panahi, e Beyond the Wall, de Vahid Jalilvand. Projectaram insidiosamente a paisagem mental concentracionária que no Irão se concretizou.

Na História nada se repete, mas tudo se contagia. Era isso o que talvez quisesse dizer Mark Twain com a máxima que lhe é atribuída, “History does not repeat itself, but it often rhymes”, que serve de epígrafe a um filme, World War III, do iraniano Houman Seyyedi, vencedor, há duas semanas, da secção Horizontes da 79ª edição de Veneza (valeu também o prémio de interpretação masculina a Mohsen Tanabandeh).

Sobre esse contágio: o cinema tem-se colocado na posição de interface vertiginoso. Fundando uma zona de guerra — apropriado no caso de World War III —, um território em que a realidade se deixa corromper pela ficção em razão de uma proximidade mútua que as faz partilhar os mesmos cenários. As consequências, nos melhores exemplos, são imprevisíveis.

Da screwball comedy às paredes do horror, do cinema social descarnado pela ironia ou pelo cinismo à fronteira com a farsa e com a angústia, de perversidade em perversidade, de crueldade em crueldade, e mesmo aceitando que nisto também há algo de auto-celebratório, podemos passar de A Quimera do Riso/Sullivan’s Travels (Preston Sturges, 1941) a O Crepúsculo dos Deuses/Sunset Boulevard (Billy Wilder, 1950), do eloquentemente intitulado Cuidado com Essa Puta Sagrada (R.W. Fassbinder, 1971) — assim bem chamado porque a puta é o cinema — a Cativos do Mal/The Bad and the Beautiflul (Vincente Minnelli, 1952) ou a Peeping Tom (Michael Powel, 1960).

Ao masoquismo que alguns destes exemplos destilam devem juntar-se os abismos da alma humana em que A Última Ordem/The Last Command (1928) mergulha. Josef von Sternberg, o cineasta, porque quanto ao homem isso não é destas contas, era um iniciado sadiano. A Última Ordem é a história de um realizador (William Powell) que, ao procurar actores para o seu filme, dá de caras com o rosto de Emil Jannings. Ele que dez anos antes, na Rússia czarista, quando era o general Sergius Alexander, chicoteara o revolucionário Leo Andreyev. Leo: nem mais menos do que, dez anos depois, o tal realizador em Hollywood.

Insistindo em Sergius, pobre, miserável figurante desenraizado, para o seu filme, Leo vai dar-lhe um chicote. E, subindo a parada da vingança e da humilhação, porque disso se trata, dá-lhe também o papel de um grande general no campo de batalha. Alucinado, confundindo o cenário com a realidade, Sergius dará a sua última ordem numa Rússia czarista de papelão num plateau de cinema. E morrerá.

Jannings ganhou com esse papel um Óscar, o primeiro dado a um actor em Hollywood, que nesse ano de 1928 o premiou ainda por The Way of All Flesh, de Victor Fleming. Quando a cerimónia foi realizada, já Emil regressara à Alemanha natal, onde se colocaria ao serviço da máquina de propaganda nazi.

Estas são também algumas das circunstâncias atmosféricas de World War III. Porque inclui igualmente um pobre diabo, um proletário sem lugar, afectivamente desapossado do mundo familiar — a mulher e a criança morreram num terramoto —, que se foi esvaziando dos pergaminhos da sua humanidade. E inclui também Adolf Hitler.

Às tantas, no trabalho a que Shakib, é esse o seu nome, se agarra apenas por um fio porque a precaridade da sua condição não o vincula já a nada de concreto excepto à espiral de sobrevivência, é-lhe oferecido o papel principal num filme. É que este chantier é um plateau de rodagem. E Shakib vai ser promovido: figurante, despirá a farda às riscas de prisioneiro de campo de concentração. Produção barata, não dá para perceber, como alguém observa, se se trata de um filme histórico ou de uma comédia (à Mel Brooks, por exemplo). Em qualquer dos casos Shakib é solução barata. Despido o “pijama”, depois do corte de cabelo e com bigode, e trabalhando a firmeza do braço na saudação, heil!, temos Hitler.

A cruz gamada passa a estar então em todo o lado, na casa que o actor Shakib pode usufruir porque ela é o cenário da casa do “boneco” Hitler. O arame farpado também se torna uma normalidade omnipresente, assim como as valas comuns. A câmara em World War III não muda de ponto de vista quando filma uma coisa e outra, a história de sobrevivência de Shakib, hoje, face à ausência de empatia social, ou o cenário do Holocausto nos anos 40, o “filme dentro do filme” de que ele é protagonista como grande ditador. O que permite todo o tipo de transferências de um cenário para outro.

Não se sabe que história, de entre as duas, World War III está a contar em cada movimento. E uma terceira, uma história-fantasma, começa a penetrar, história de humilhação e de perversão, de desapossamento e de indiginidade (é difícil amar a personagem interpretada por Mohsen Tanabandeh, é impossível também vermo-nos livres dela do nosso pensamento). A Besta irromperá de entre os humilhados e ofendidos.

Foi impressionante, para além das qualidades intrínsecas do filme em projectar insidiosamente a imagem-fantasma do que se activa hoje nas sociedades, ver World War III emVeneza em conjunto com No Bears, de Jafar Panahi, e Beyond the Wall, de Vahid Jalilvand, dois títulos do concurso principal. Isto porque os cineastas iranianos estão já a olhar a partir da sociedade concentracionária que ali se concretizou.

Beyond the Wall utiliza um dispositivo, moldado pela intervenção de flashbacks, que está sempre a iluminar/ obscurecer a natureza daquilo que vemos. O que parece um thriller de acção torna-se thriller psicológico e depois até o thriller se esfuma e resta-nos a paisagem mental de um encarcerado. Era aí que estávamos desde o início, antes de o percebermos.

Não ficamos apenas pela metáfora. Na sua obra, “clandestina” desde Isto Não é um Filme (2011, filmado já durante uma prisão domiciliária), Jafar Panahi tem explicitado a vida cercada no Irão (recorde-se O Círculo, há duas décadas). E com isso arquitectado a geometria do seu enclausuramento. Como se, crueldade das coisas, tivesse estado a construir, bloco a bloco, filme a filme, o muro que o isola hoje do mundo. É, hoje, prisioneiro das autoridades, que activaram uma sentença de 2010. Entrou para dentro dos seus filmes.

Mas No Bears é mais ainda: é um momento agudo de crise reflexiva sobre o (seu próprio) cinema. Nem distanciando-se da tentacular Teerão em direcção ao campo, onde Kiarostami ou Makhmalbab fundaram, no passado, relações frondosas com o real, pode Jafar evitar a revolta, a recusa, a violência do que é observado. Desliga o carro, desliga o cinema. Momentaneamente, espera-se que só momentaneamente, está sem saída.

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2022-09-23T07:00:00.0000000Z

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