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O cinema em Angola faz-se em estado de urgência

António Rodrigues, em Luanda

Nunca se Äzeram tantos Älmes em Angola como agora. Quem o garante é Jorge Cohen, um dos co-fundadores da produtora Geração 80, uma das principais referências no audiovisual angolano desde a sua criação em 2010. “Esta vai ser a década do cinema angolano”, disse ao Ípsilon numa conversa na sede da empresa, em Luanda, com a participação de Ery Claver, o realizador de Nossa Senhora da Loja do Chinês que se estreou no Festival de Locarno.

Ninguém se pode permitir gastar demasiado tempo a pensar no que quer filmar em Angola. Uma cidade como Luanda muda do dia para a noite, a urgência não é questão de filosofia, mas imponderável de sociedades jovens em permanente mutação. Como explica um dos co-fundadores da produtora Geração 80, Jorge Cohen: “Aqui os tempos são diferentes”.

“Nós, em Angola, não nos podemos dar ao luxo de fazer um filme de oito em oito anos. Porque daqui a oito anos a cidade já mudou, as pessoas já mudaram”, explica Cohen. “Temos uma população extremamente jovem, não podemos cair na tentação de fazer filmes de forma arbitrária e sem consequência. Temos de arranjar um meio termo entre produções rápidas e consequentes.”

E o que podia ser um entrave, a falta de estruturas que permitam montar produções cinematográficas, transforma-se numa oportunidade para “usar formas diferentes” de produzir. “Importar o modelo internacional, extremamente estruturado, que funciona noutras geografias, pode ser fatal caso queiramos desenvolver uma indústria cinematográfica em Angola”, afirma.

Jorge Cohen criou a Geração 80 com Tchiloia Lara e Fradique, o realizador de Ar Condicionado, que se estreou em Janeiro de 2020 no Festival de Roterdão. A produtora que começou em torno de Alambamento, a curta-metragem de Fradique (que também assina como Mário Bastos), de 2010, transformou-se na principal referência do actual cinema em Angola.

“Ainda não está consolidado, mas é inegável o contributo que a Geração 80 está a ter para o cinema angolano contemporâneo”, confessa o produtor sem falsas modéstias, mas sem querer subir acima de nenhum pedestal. “Nunca tivemos tanta atenção ao cinema como agora e estamos a começar a ver um olhar diferente para o cinema. A Geração 80 deu o seu contributo, é inegável, mas não somos a única produtora, há várias, cada uma a fazer o seu caminho e a trabalhar no cinema em que acredita”, explica Cohen.

“Uma coisa é certa: as próximas gerações vão ter mais facilidade, mais abertura, porque abrimos um caminho, uma forma de fazer cinema: não são filmes perfeitos, mas funcionam”, acrescenta Ery Claver, o realizador de Nossa Senhora da Loja do Chinês que acaba de ter a sua estreia no Festival de Locarno. “A mim, como cinéfilo, ajudam-me a criar esse imaginário que eu tanto quis, de Luanda, da minha sociedade. As novas gerações vão estar mais apaziguadas nesse sentido e vão estar muito mais preparadas para um caminho de cinema muito melhor e mais marcante.”

O que temos é a explosão de uma cinematografia que mesmo com parcas referências históricas a que se agarrar — Sarah Maldoror, Rui Duarte de Carvalho —, e desconfiando muito do passado enviesado e ideologizado ensinado nas escolas e difundido na televisão, vive em constante presente — mutante, acelerado, surreal — com vocação e vontade de contar a sua própria história — de forma rápida, imperfeita. Uma necessidade permanente de mostrar aguçada por um constante estado de urgência.

Desde acção a comédia, passando pelo documentário e até pela animação; filmes sem orçamento ou com orçamento, co-produções internacionais filmadas em Angola: o cinema angolano “nunca teve tanto vigor”, garante Cohen. Produção insuficiente, desestruturada, “às vezes semi-inconsequente, mas viva e cheia de energia”.

“O cinema angolano hoje está vivo, é frágil, precisa de cuidados, não podemos relaxar e dizer ‘ah, já temos um cinema com expressão’. Temos um cinema diverso que ainda não encontrou a sua forma de escoar e de chegar às pessoas de forma eficaz, mas que para lá caminha. Os próximos três ou quatro anos vão ser decisivos.”

O produtor está convencido que se a década anterior foi a da explosão da música popular angolana que, de

questões”, diz o realizador e argumentista.

Puzzles

Resolver o puzzle pode acabar por se tornar ao mesmo tempo na sua criação, no estabelecimento de regras para a sua resolução, tudo ao mesmo tempo, sem que quem olha saiba se criação, puzzle ou regras se harmonizam entre si e se se harmonizam com a realidade. Procurar uma linguagem é também estilhaçar cristalizações, heranças, modos de fazer.

“Porque o que aprendemos foi com pessoas externas, que nos deixaram como herança essa capacidade muito vaga de ver o nosso próprio lugar. Nós estamos em contacto com as coisas intrínsecas de uma sociedade, mas procuramos vê-la como se estivéssemos de fora”, desabafa Claver. Com um legado técnico e estético herdado, “nunca tentamos ousar, perceber realmente a nossa visão sobre o lugar onde estamos, por mais deturpada e inconsistente que seja”.

“Quando decidi fazer cinema, uma coisa mais autoral, a minha ideia sempre foi a de partir todos esses esquemas que eu tinha aprendido na televisão, que me limitavam muito na abordagem da minha cidade — Luanda, no caso”, diz. Sempre foi uma forma de dizer: deixemme fazer de outra maneira! Não quero fazer como aprendi, como me ensinaram, quero descobrir à minha maneira.”

Trilhar esses novos caminhos pode ser tão errático como as vielas de um musseque, onde as ruas

Numa cidade como Luanda, obstinada em desaustinar quotidianos, onde a existência insiste em ser sobre(vivência) e sub(vivência) e quase nunca se admite a vida sem prefixo, aquilo que não falta são pretextos para filmar, histórias para contar, prédios, lixo, carros, buracos onde cair e de onde se levantar

podem terminar em casas e as casas terminarem em outras casas e as pessoas perderem-se nesse labirinto de bairros descondicionados e levarem com eles o narrador e a sua obra cinematográfica. Mas o invés pode ser um candeeiro iluminando a escuridão de uma rua que nunca o teve e mentir.

“Não sei se alguma vez chegámos a ter um olhar cinematográfico intrínseco” em Angola. “Há cinematografias bem pautadas no termo urbano. Por exemplo, o Brasil também sofreu todas as influências estrangeiras, mas tem um cinema urbano muito característico. Nós também podemos construir esse cinema, só que nunca tivemos muita autonomia para isso. É preciso alguma coragem de entrar por um caminho que às vezes vamos percebendo que não é tão romântico, que vem com todas as dificuldades, mas pelo menos observamos essas dificuldades ao fazer algo com que nos identificamos.”

Socialismo e abertura

O nascimento da Geração 80 é desses casos. “Fazer uma produtora em 2010 era um desafio”, confessa Cohen; uma ousadia, tratando-se de “uma produtora independente, fora de uma estrutura clara de poder”. E surgiu — será que se lhe pode chamar arrogância ou só juventude? — com “vontade de inspirar a nova geração”.

“Era o nosso lema. Inspirar a nova geração, mostrar que era possível contar histórias mais alternativas, fora do mainstream”, conta o produtor. E o nome escolhido é já por si um tratado de afirmação e responsabilidade, porque a geração nascida nos anos 1980 em Angola nada tem a ver com hedonismo, chumaços, cores e purpurina que evoca na Europa. É a geração da transição do socialismo — do tempo do partido único, da influência soviética, do racionamento, da ideologia — para o capitalismo — com o seu lado de liberalismo selvagem, de ascensão do dinheiro como valor social quase único, mas também da abertura ao mundo.

“Sinto-me privilegiado por termos vivido uma parte da nossa infância dentro do socialismo, de uma Angola socialista, ainda com alguns resquícios de ideologia e de ideais”, confessa Jorge Cohen, e de “termos crescido, no final da nossa adolescência e passagem para a vida adulta, numa Angola um pouco mais aberta”. Esta Geração 80 é, portanto, “uma geração que estava no meio de dois tempos”.

Por isso, nas discussões prévias à criação da produtora, duas ideias estavam subjacentes: “Queríamos que fosse algo colectivo, algo mais geracional, e também uma ruptura com o que estava a ser feito.” E olhando para trás, é isso que continuam a fazer, trabalhando em equipa nos filmes uns dos outros: Claver estreou-se na realização agora, mas foi o director de fotografia de Ar Condicionado, que também co-escreveu, e de outras curtas-metragens. Ar Condicionado tem música de Aline Frazão, luandense da mesma geração, que se estreou assim a compor para cinema, depois de vários dos seus vídeos musicais terem sido produzidos pela Geração 80.

Os três também queriam uma produtora “capaz de produzir consistentemente”, para isso, tiveram de pensar em termos empresariais, conta Jorge Cohen. “O lado comercial vem por dois motivos, o primeiro por necessidade, porque ainda continuamos sem um fundo público de apoio ao cinema, sem uma legislação clara a esse nível; depois, para garantir uma certa independência, para podermos ter um pouquinho mais de liberdade para contar as nossas histórias.”

Mas o que “começou com uma relação de amor ódio”, transformouse ao longo dos anos — “com o tempo começámos a respeitar esse trabalho comercial e acho que isso nos criou bastante maturidade e algum profissionalismo”, explica Cohen. “Garantiu-nos um vigor técnico muito grande”, acrescenta Claver. “Não estamos a fazer cinema sempre, mas estamos a filmar sempre. O que nos garante um vigor de estrutura e visão fílmica muito grande, muito presente.”

Olhar angolano

Destreza que também veio desse grande trabalho de “preservação da memória” que é Angola, nos Trilhos da Independência. Mais de 600 pessoas entrevistadas ao longo de 57 meses que resultaram em 900 horas de material audiovisual, tudo para contar uma versão angolana da luta de libertação nacional.

“Ano após ano tens a alguém a dizer-te como é que tu és, como é que foi e não éramos nós a contar a nossa história na primeira pessoa. Acho que parte um bocado dessa motivação, dessa necessidade de tentarmos trazer esse olhar, um olhar um bocadinho mais interno”, afirma Cohen.

“Nós já andamos aqui há algum tempo e já servimos de alguma influência para essa nova geração”, conta Claver. Uma influência que tem retorno: “Com a nova geração há um diálogo muito grande, que é toma lá dá cá, da mesma forma que os inspiramos, também eles nos inspiram muito”. Um contraste grande em relação ao que foi o percurso das pessoas da Geração 80: “É uma colaboração muito mais directa do que nós tivemos com a geração anterior à nossa que não foi tão colectiva, com quem não dialogámos tanto”.

Chegados aqui, produtor e realizador discordam sobre o que é importante filmar ou não filmar. Claver, mais desconfiado do passado, prefere as histórias daqui e d’agora. Cohen teme a ausência do pretérito na produção angolana.

“Não acho que haja um excesso de presente, há uma pertinência total do presente, mas existe uma negação do passado e isso é terrível para o desenvolvimento das sociedades”, afirma o produtor. Porque é quando as pessoas deixam de olhar para trás, tementes a se transformarem em estátuas de sal, que o passado se disfarça de presente e se voltam a cometer os mesmos erros como se fossem novos.

“Se olharmos para um contexto africano mais amplo, voltámos a ver golpes de Estado de forma consecutiva, como já não víamos há muitos anos; voltámos a ver transições não pacíficas de poder; acho que isso tem a ver com a nossa negação em aprendermos com o passado e a nossa recusa em enfrentar os factos”, argumenta. “Nós estamos em constante negação” e “enquanto isso acontecer não nos vamos desenvolver, ou nos estamos a embriagar ou a iludir, mas não estamos a ter esse retrato real”.

“O passado foi muito manipulado, não tens controlo sobre ele. E sempre que te metes a entender o passado, estás sujeito a uma manipulação pré-definida; o teu presente, não, estás a moldá-lo”, contrapõe Claver. “Acho muito injusto o tempo que se perde, mesmo na diáspora, a discutir sobre o passado. O presente é agora, tem pessoas agora, tem situações agora, tem acontecimentos agora. É mais fácil nos prendermos ao que está a acontecer porque isso também vai ser passado. É mais fácil construirmos um presente recheado de questões e de interesses para termos um produto cultural representativo, feito por nós, onde daqui a uns anos podemos ir buscar informações.”

O que os dois não abdicam é de continuar a mostrar Luanda e Angola de um (ou dois ou três ou quatro) ponto de vista angolano. E de continuarem a testar os seus limites. 2023 será o ano da reavaliação. Quando se estrear o filme de Hugo Salvaterra ( já começou a ser rodado) que completará a tarefa estabelecida em 2019 de fazer três longas-metragens, uma por ano. A pandemia baralhou um pouco as contas, mas não os objectivos.

Como afirma Jorge Cohen, “nós ainda não temos nesta nova década um filme angolano que faça parte do imaginário colectivo”, como o Assaltos em Luanda, de Henrique Narciso ‘Dito’, marcou a anterior. Mas ainda faltam alguns anos para o fim deste decénio e a Geração 80 vai continuar a fazer filmes.

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