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Alucinaram Como eles no Great Yarmouth

Vasco Câmara

Aexpectativa em relação ao cheiro a sangue de Great Yarmouth — Provisional Figures começa por estes dias a confrontar-se com o ecrã, uma vez que o filme de Marco Martins que se segue ao espectáculo homónimo de 2018 (não tanto para o adaptar como para o prolongar), teve esta semana estreia mundial no Festival de San Sebastian.

É questão agora de esperar alguns meses, até ao final do ano ou princípio de 2023, segundo o realizador, para ter o filme nas salas.

Quem esteve antes em contacto com as histórias, em versão teatral, decantada, de uma fábrica inglesa, numa cidade costeira no condado de Norfolk, com os seus trabalhadores imigrantes (portugueses) e locais que se transformam em números junto de perus degolados e esventrados que depois chegam às mesas de Natal, que não espere realismo social explicitado no ecrã. Quem não viu a peça, que se agarre também.

O filme não dá a ver “mais”, contrariando a expectativa de que uma “adaptação” ao ecrã (se é que este filme é isso, uma “adaptação”), existe para que vejamos o que o palco não pode mostrar. Great Yarmouth — Provisional Figures, filme, dá sobretudo a ver outra coisa: aquilo que o realizador experimentou como um dos lugares mais terríveis da terra (e era the finest place in the universe no David Copperfield de Charles Dickens) e aquilo que essa espécie de Las Vegas balnear decadente, fantasmagórica, contribuiu para uma zombificação. Com a ajuda da tensão pré-Brexit e de uma pandemia.

Os corredores de hotéis e os murmúrios das personagens, e não uma fábrica, são agora os “lugares”. É uma paisagem mental. Indica algo sobre o mundo psicológico que enfrentaram os actores e a equipa, obrigados a isolarem-se nos quartos (e a testarem-se à covid, para saberem se iam para o grupo clean ou para o grupo dirty) durante a rodagem. Dessa forma germinou a semente de paranóia que Marco Martins

Quem viu a peça, não aguarde por realismo social. Quem não viu, que se agarre. Great Yarmouth — Provisional Figures, de Marco Martins:os corredores da paranóia numa estância balnear inglesa à beira do Brexit e em plena pandemia.

semeara no projecto. A ficção Great Yarmouth — Provisional Figures também é então um documentário sobre uma equipa de cinema.

E depois há Beatriz Batarda, ou Tânia. É o “contacto” dos imigrantes que aspiram ao trabalho. É simultaneamente o centro da sua esperança e da sua danação. Tânia: uma personagem com tanto de tentacular como de trágico, na sua ambição de, também ela, transcender um destino. É mais uma demonstração do corredor privilegiado que a actriz tem com a severidade, com a crueldade.

Em que momento do trabalho sobre Great Yarmouth — Provisional Figures, espectáculo de teatro, surgiu a vontade de o continuar através do cinema? Muito cedo no processo. Não comecei a trabalhar com os intérpretes [da peça] a pensar que ia fazer um filme, mas muito cedo tive essa ideia. Porque fiquei com uma espécie de memória daquilo que os intérpretes me contavam. O filme, até pela chegada da pandemia e pela impossibilidade de filmar nas fábricas e nos próprios hotéis, é uma ficção construída em cima das narrativas daqueles actores. Havia uma vontade de conhecer essa experiência para lá do estúdio, para lá da minha experiência de ouvinte na sala de ensaios.

Por outro lado, havia a necessidade de os colocar no espaço.

Depois, ainda, houve uma modificação que se estava a operar naquele momento, como uma conspiração paranóica: a chegada do Brexit. O que ia acontecer àquelas pessoas que iam deixar de poder trabalhar ali? Isso tudo potenciava algo que já ali existia: o facto de aquelas personagens estarem numa realidade paralela.

Uma coisa que estava também presente na construção das imagens era as luzes de uma marginal, uma zona luminosa e uma parte de trás escura. Não só o facto de as personagens se movimentarem à noite, sendo quase invisíveis; também um lado ácido.

De uma Las Vegas decadente...

... apocalíptica...

... tanto podem ser imagens de um fim do mundo como de outro que começou e ainda não se sabe o que é.

Os filmes são um bocadinho misteriosos nesse sentido. Havia uma vontade de regressar aos espaços, à geografia daquele lugar que com a chegada da pandemia passou a fazer parte de um sistema de paranóia. Houve uma altura em que o João Ribeiro, director de fotografia, não podia ir ao décor porque estava com covid. Então nós íamos à noite, undercover, pare ele nos explicar a luz daquele sítio para filmar. Está no filme, e não estava no início, uma vertente de alucinação, de sonho, de pesadelo. Isso vem daqueles meses particulares devido à covid. Qual é a linha cronológica do trabalho sobre o espectáculo e do trabalho sobre o filme?

A primeira visita a Yarmouth aconteceu há cinco anos. Foi um convite para fazer um espectáculo a partir do trabalho com a comunidade portuguesa que por ali estava e de que ninguém falava. Eu vinha do [filme] São Jorge [2016] e foi muito evidente para mim que as pessoas da crise, desse filme anterior, estavam todas agora ali — não só metaforicamente; estavam lá muitas delas, que tinham ficado desempregadas, muita gente da margem Sul. Foi evidente que era um sítio onde eu queria trabalhar.

A peça estreou em 2018. Continuámos a ficar ligados àquelas pessoas, o que é uma coisa que me acontece. Já existia em paralelo a ideia do filme. Estava em que fase?

Estava sobretudo em processo de saber que filme construir a partir da peça. Sabia que não queria fazer um filme de realismo social. Queria trabalhar a partir da ideia de paranóia, de zombificação das pessoas. Isso nasce nessa altura, também porque começo a trabalhar as ambiências do filme. Por exemplo o homem que faz de peru [na peça] vai depois para a sequência do Romeu Runa [no filme]. São coisas que me começam a levar para algo muito mais negro do que os meus filmes anteriores. Era o terreno ideal, a altura ideal para experimentar novas formas.

A pandemia veio acrescentar. Veio, veio. Estivemos seis meses parados. Recebemos o telefonema de Marcelo Rebelo de Sousa a dizer “vocês têm de sair daí, isto vai fechar”. Era Março. Viajámos de

“Queria construir não só um filme que se aproximasse da paranóia como género mas também uma personagem que se afastasse do arquétipo do trabalhador dos filmes do realismo inglês. Não queria construir um santo, queria construir um diabo”

Inglaterra no último avião para Portugal. Até esse momento eu achava que ia poder continuar a filmar, até porque Inglaterra foi o último país a fechar. Mas de repente parou. Foi muito traumático para a equipa toda. Aeroporto vazio, toda a gente a chorar, fomos embora. Achei que não ia acabar o filme. Havia coisas que estavam perdidas. Não podia, por exemplo, filmar a fábrica.

Para dar uma ideia [do que se vivia]: eles dividiam os figurantes entre aqueles que tinham testado duas vezes, os clean, e os que não tinha e tinham de se manter a uma distância considerável, os que eles chamavam os dirty.

Tive que refazer o guião durante os seis meses em que estive cá parado — e em que aceitei o projecto Um Corpo Que Dança [filme sobre o Ballet Gulbenkian, ainda em sala] para não endoidecer.

Esse lado de paranóia, de claustrofobia, começou então a acentuar-se no filme.

Conta, no dossier de imprensa, as suas noites solitárias a escrever num quarto de hotel que foi o hotel em que Charles Dickens escreveu David Copperfield...

Que é o hotel em que filmámos. Sobre o mundo paralelo em que vivem as personagens: Beatriz Batarda está sempre numa espécie de murmúrio com ela própria, visto que está a aprender inglês, decorando frases que depois vai utilizar.

Não estabelece relações com ninguém. Tudo se centra na sua construção.

Nas entrevistas que ia fazendo com as pessoas que ia conhecendo, imigrantes portugueses ou habitantes de Yarmouth, e algumas acabaram por trabalhar comigo, outras não, havia uma figura que aparecia frequentemente: esta senhora. Na realidade, era uma inglesa a quem os portugueses se referiam como “a mãe dos portugueses”. Era ela que fazia os contactos entre as agências de trabalho em Portugal e as fábricas e fazia o que depois a personagem do filme, a Tânia, vai fazer: colocálos nos hotéis [no filme, uma rede que pertencia à família do marido]. É uma figura complexa, está sempre em contradição.

Queria construir não só um filme que se aproximasse da paranóia como género mas também uma personagem que se afastasse do arquétipo do trabalhador dos filmes do realismo inglês. Não queria construir um santo, queria construir um diabo. Sobretudo, porque Yarmouth tem isso: os bares, as discotecas, um lado de alucinação, de bebedeira, a noite. Comecei a construir a Tânia com isso: por um lado, elo de ligação entre um passado da comunidade portuguesa e o seu desejo de futuro; por outro, alguém que já não quer ser português.

Pensando em Alice e em São Jorge: há nesses filmes anteriores uma ligação a uma ideia de família, mesmo que seja a ligação a um ideal. Aqui não há nada. Mesmo a relação conjugal de Tânia...

... é utilitária. Os afectos são todos utilitários. Isso tem a ver com o local. Para mim, é um dos lugares mais devastadores que já vi.

Que quotidiano tinham a equipa, os actores...?

Na primeira fase [de rodagem] foi óptimo. Antes da pandemia, era normal. Jantávamos todos fora, etc. A partir do momento em que chegou a pandemia, não podíamos sair dos quartos, almoçávamos e jantávamos nos quartos. As regras eram muito restritas, o plateau era desinfectado todos os dias. A única coisa que fazia era terapêutica: à noite saía de carro e ia por ali fora.

Era a primeira vez que estava a construir uma personagem principal feminina — Sara [série, 2018] aconteceu na televisão. Era a grande vontade também de explorar uma personagem que tivesse um desejo mais glamouroso: ela quer cantar karaoke, dançar, ter outra vida em oposição ao mundo da fábrica. Quando se vê o espectáculo e se pensa numa adaptação cinematográfica, imagina-se que o filme vai dar a ver mais. Por exemplo, todo o conteúdo sanguinolento e pestilento da fábrica. Ora, o filme não se passa dentro da fábrica, passa-se em corredores dos hotéis. Determinação inicial ou contingência da pandemia?

Por causa da pandemia. Eu não podia filmar dentro da fábrica, onde existiam muitas condicionantes. Aliás, o que existe da fábrica no filme foi filmado cá em Portugal. Fazendo uma analogia com as expectivas sanguinolentas: o filme é surpreendentemente murmurado. Há uma sequência em que a personagem de Beatriz Batarda grita. Mas geralmente, é um filme murmurado, sem espectacularização da acção...

...

Não vê dessa maneira...?

São personagens marginais e por esse lado, sim, há um lado silenciado. Mas depois existe o sonho dela e a relação dela com Raul, que é de outra natureza.

Mas é tudo espaço mental...

Sim, é verdade.

Por isso, os corredores... lembrei-me de Roman Polanski, o espaço físico como extensão da mente.

Sim, nessa ideia de trabalhar os espaços mentais há algo do The Tenant/ O Inquilino [1976].

Aliás, os corredores podiam ser reconstituições de estúdio...

Sim, esse lado de pesadelo foi uma constante de trabalho.

São Jorge tinha uma coisa, e se calhar não quis fazer isso neste filme: a ideia do Nuno [Lopes, actor] e da criança. A partir daí somos capazes de ver tudo.

Sim, essa relação dava ao espectador uma almofada emocional que neste filme não existe.

Os meus filmes demoram sempre muito na montagem. Este demorou mais pelo encontro com a personagem principal. Apesar de ser o meu filme mais coral. Nunca tive tantas personagens. Mas a ligação emocional com a personagem principal era mais complicada.

Kris Hitchen é o actor de Ken Loach...

Sim, de Sorry we Missed You (2019). Adorei vê-lo, e como ele é assim um género “não actor...” foi perfeito... Beatriz Batarda: tem um corredor privilegiado com personagens amargas, severas, duras. Desde o longínquo A

Caixa (Manoel de Oliveira, 1994)...

Ela é severa com ela própria.

Falou no prazer do encontro com aquele “não actor”. Beatriz Batarda é o oposto de uma “não actriz”...

É. Temos um relacionamento de anos. Somos amigos de infância. Quando comecei a ouvir falar desta figura, que operava numa frequência diferente da dos outros trabalhadores, correspondendo à figura do escravo que se torna patrão, percebi que a personagem podia funcionar num registo diferente. Comecei a pensar na Beatriz. Durante a paragem por causa da pandemia, em que tive de reescrever e ver o material para perceber o que funcionava melhor — algo que nunca acontece na rodagem em condições normais, um momento de reflexão a meio do processo —, percebi que a Beatriz, que tinha estudado em Londres, não estava a funcionar com o seu sotaque posh, mais inglês do que o dos outros actores ingleses com o sotaque de Yarmouth.

Ela foi também alguém que construiu a personagem através da experiência que teve de trabalho na própria cidade, esteve a trabalhar num pub.

Não tenho um método. Era obrigatório trabalhar na fábrica. Era tudo. Isso moldou as personagens em termos de registo, de frequência. Se se trabalhar oito horas a matar e a esfolar perus... O andar da Beatriz nasceu disso. Há uma série de coisas no processo de um actor a que se chega mais depressa com o físico. Não tenho muita paciência para a conversa de mesa sobre o que é a personagem. O mais importante é a memória que fica no corpo. No caso do trabalho da Beatriz: do que ela ouviu lá, do que aconteceu, do tempo que lá passou, dos homens que a queriam levar para casa às duas da manhã na hora de sair.

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