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A escultura de Sara Bichão vestir também serve para

Isabel Salema

Os últimos trabalhos de Sara Bichão, resultado de uma residência artística na ilha Ouessant, podem ser vistos nas Carpintarias de São Lázaro, em Lisboa. As suas esculturas entram em diálogo com o trabalho da performer Violaine Lochu e o resultado aponta para que há algo de novo em acção.

Vestir ou não a escultura — eis a última questão do trabalho de Sara Bichão. Não foi, porém, à artista lisboeta que coube habitar o novo trabalho desenvolvido durante uma residência artística que realizou este ano numa ilha situada ao largo da Bretanha francesa e agora mostrado numa exposição que podemos ver até Outubro nas Carpintarias de São Lázaro, em Lisboa. A tarefa de vestir a esculturafato de Sara Bichão, a que chamou Duplo V., foi protagonizada pelo corpo da artista francesa Violaine Lochu, performance que ficou registada em vídeo e que podemos ver na grande sala deste centro cultural situado na rua de São Lázaro, próximo do Martim Moniz.

É a primeira vez que a escultora portuguesa trabalha directamente com a artista francesa. As duas mulheres jovens caminharam em paralelo durante um mês, cada uma naufragada na sua ilha atlântica — Sara em Ouessant, ao lado da costa de Brest, e Violaine em São Miguel, nos Açores. Esta dupla ficcional nasceu com o projecto artístico Twin Islands — uma iniciativa incorporada na Temporada Cruzada Portugal-França, o intercâmbio diplomático e cultural que durante este ano aproximou os

dois países europeus. A missão das artistas passou por olharem para a distância a partir das respectivas ilhas. Depois de terem enchido os olhos com o mar infinito dos territórios insulares, esperava-as o reencontro. O trabalho foi inicialmente mostrado no CAC Passerelle em Brest e há-de chegar aos Açores em 2023.

“Converso com as pedras, com as raízes, com as conchas, com os dejectos, com as flores, com os cogumelos, com a água, com os espinhos, com os outros animais…”, escreveu Sara Bichão no diário que manteve na ilha onde viveu sozinha num farol durante cinco semanas.

Nas Carpintarias encontramos também vestígios arqueológicos de obras mais antigas, como de uma performance realizada em 2021 em que a artista transportou um bloco de gelo entre Lisboa e Almada, uma acção integrada na edição do ano passado da bienal de arte contemporânea BoCA, parte de uma exposição colectiva que comemorou o centenário do nascimento de Joseph Beuys (1921-1986) e teve curadoria de Delfim Sardo e Sílvia Gomes. É o caso da escultura Naufrágio, um barco cuja carapaça foi utilizada como contentor para a viagem do gelo através do Tejo, aqui expandida com conchas, cordas, plásticos, tecidos e tantas outras coisas respigadas nos passeios ou nos arquivos do atelier de Sara Bichão.

As esculturas de Sara Bichão são objectos que também passaram por um naufrágio. Viverão uma outra vida através da reciclagem que a escultora introduziu como parte do seu método de trabalho. Têm tanto de objets trouvés surrializantes, de ready-mades, como podem ser vistos como devedores de uma prática artística à la Beuys, um dos mais influentes artistas da segunda metade do século XX. Cruzam arte e vida, facto e ficção, natureza e ritual.

As caminhadas estão no centro da sua prática artística, passeios pela natureza que foram especialmente ritualísticos e até terapêuticos na dura experiência que foi viver isolada no farol de Ouessant e cujas memórias emergem na exposição. Não será por acaso que a escultura Pé Dentro, Pé Fora incorpora um velho par de botas que pertenceu à artista, feito por medida para os seus pés que já percorreram milhares de quilómetros. É uma obra com um twist de humor, mas já falaremos sobre a importância da infância no discurso que a Sara Bichão constrói sobre a sua própria obra.

A curadora Ann Stouvenel, autora do texto que acompanhou a exposição até à semana passada em Brest, considera que tanto a vivência de Sara como a de Violaine nas ilhas as aproximou da experiência limite que o cineasta alemão Werner Herzog conta no livro Caminhar no Gelo (ed. Tinta da China, 2011), um diário sobre uma caminhada realizada entre Paris e Munique. As duas acabaram por descobrir, como ensina Herzog, que a comunicação à distância, imaginada ou mágica, é mais importante do que o reencontro.

Sara Bichão registou também no Inland Journal que acompanha a exposição das Carpintarias esta experiência quase doentia de viver num farol:

“A independência da ilha é, também, uma prisão. No outro dia vi um homem que estava dentro de casa a olhar cá para fora com binóculos.”

“Je marche, je marche, je marche, je parle, je marche. Ando para me libertar.”

A única obra que desenvolveu na ilha para a exposição de Lisboa foi precisamente a escultura-fato Duplo V, aquela que aponta que há algo de novo aqui em acção. “Talvez seja o trabalho mais sonhador, mais livre”, conta Sara Bichão ao Ípsilon. O resto foi realizado já no atelier.

“Assim como fiz o texto, fui fazendo a peça. Cosendo, medindo o meu corpo, sabendo que o da Violaine era um bocadinho mais pequeno do que o meu. Ia fazendo este tipo de perspectiva, de relações, e ia desenhando, normalmente à noite, em estado de maior transe. Não era uma coisa muito analítica. Não

O corpo em tensão, a escultura em tensão, cujos contornos são esticados ao limite, é então a peça central da exposição Twin Islands. Mais do que uma escultura para habitar Duplo V. é uma escultura para vestir

tinha tanto a consciência do que estava a fazer.” A artista registou no tecido-pele as marcas, “as energias”, do seu corpo; assim como registou com palavras a sua passagem “arqueológica” por Ouessant.

E voltamos ao diário: “Talvez não tenha referido, mas aqui não se rouba. Esforço-me para esquecer o que é meu e não me apossar daquilo que pode ser dos outros. Além disso, os coelhos são uma figura alada. A superfície é um tecido estomacal sonhado para se caminhar. As lapas que jazem com a concavidade virada para cima são vénus expostas que nos orientam sobre o caminho a seguir.”

Feita de tecido pintado, conchas e cordão, Duplo V pode igualmente ser lida como uma Vénus Renascida. É um corpo que paira, diáfano, sobre as nossas cabeças, confundindo horizontes — onde fica o acima e o abaixo, onde fica o este e o oeste? Os ventos serão as cordas que puxam este corpo transformado em escultura em todas as direcções.

O corpo em tensão, a escultura em tensão, cujos contornos são esticados ao limite, é então a peça central da exposição Twin Islands. Em obras anteriores, o tecido cru surgia moldado por estruturas em madeira — como em She has nothing to say, she has everything to say (2017-2022), realizada em colaboração com Manon Harrois. A obra foi várias vezes activada pelas artistas, a última das quais já este ano durante a Landart Cascais (com curadoria de Luísa Soares de Oliveria), ganhando aí uma presença de escultura-abrigo. Esta exposição mostra a escultura têxtil de Sara Bichão a largar essa estrutura esquelética. Mais do que uma escultura para habitar, Duplo V. propõe-se como uma escultura para vestir, de que Pé Dentro, Pé Fora, sugestivamente, é um trabalho intermédio, mesmo que tenha sido feito posteriormente.

A ideia de Sara Bichão nunca passou por ser ela própria a vestir o fatoescultura, contou ao Ípsilon. Fê-lo antes a pensar no corpo da sua gémea ficcional, mesmo que, fantasmas à parte, possa aparecer por aqui o espectro de Helena Almeida (19342018), uma artista que fez das suas Telas Habitadas o ponto de partida de uma carreira que marcou a arte portuguesa das últimas décadas.

“O trabalho de Violaine é usar o corpo e a voz. Foi a forma mais directa que encontrei de lhe propor que activasse a minha linguagem, usando a dela também.” A artista portuguesa acabou assim por tornar exterior ao seu corpo a ideia de acção presente em trabalhos anteriores. O fato, no entanto, nunca mais poderá vir a ser vestido, uma vez que as aberturas para os pés foram cosidas depois da performance, nota, apontando como as marcas das solas dos pés de Violaine ficaram registadas na escultura durante a performance. “Eu crio um instrumento para alguém poder manipular e activar a obra. A Violaine é ela própria um medium do espaço e do som [da ilha] e naquela pele está tudo implícito. A Violaine traz a minha fantasia para o espaço comum. O meu trabalho normalmente é silencioso e distante. Inacessível.”

No diário da estadia há memórias de coelhos que voam, de galinhas que são cães e de cabras que são crianças. Os humanos, esses, são apenas um vestígio.

O corpo torna-se bidimensional nas Carpintarias. É achatado até se transformar numa pele. Mas é esticado e torna-se elástico. “O facto de aquele corpo se expandir lembra-me a força que uma sombra pode ter. Aumenta a escala da realidade, existe em perspectiva, mas não tem enchimento.”

A pele de Duplo V. contém todo o trabalho que está à volta na exposição, diz a artista. “Nos vários tempos da experiência [na ilha] e no tempo póstumo. Como se fosse uma hipótese quase apocalíptica do tempo em que vivemos. Pode ser um registo arqueológico, mas também surge como um deus a usar o espaço de cima.” A ilha, escreve a artista, é um espaço projectado para o fim.

Duplo V. e Pé Dentro, Pé Fora são projecções das caminhadas de Sara Bichão, mas também registos da prática performativa da artista francesa. Uma das pernas que antropomorfiza a última escultura é uma carpete do atelier de Sara Bichão em que Violaine Lochu se enrolou quando passou por Lisboa em Fevereiro a caminho dos Açores. Mas as contaminações que podemos encontrar de Beuys ou mesmo a Helena Almeida não são intencionais, sublinha a artista, porque as suas referências serão mais ancestrais e exteriores à própria arte. “Os dois fazem parte da história de arte, do que estudei e vivi, mas eu não me relaciono assim com a arte. Sinceramente, estou muito mais inflamada pela imagem do cartoon, dos desenhos animados da infância, do que por Beuys. O meu conjunto de influências, que não consigo decifrar, também tem muito a ver com o trabalho da terra, com o trabalho do mar, da minha família materna e paterna, com o afecto. O meu trabalho tem muito a ver com a vida infantil que eu não consegui largar.”

Do sul de Portugal, herdou uma relação forte com a terra vermelha, com a agricultura, com uma disciplina de sobrevivência, de recolecção de materiais, de reciclagem. Da Costa Nova vem a relação com uma tradição de pescadores de alto-mar e de capitães de máquinas. Consegue rever essas ligações quando escolhe um objecto em detrimento de outro. “São essas duas imagéticas”, da terra e do mar, “que estão muito presentes. Não posso ter a certeza, mas imagino que essa relação com a terra tenha ajudado um bocadinho.”

Twin Islands fica nas Carpintarias de São Lázaro até 2 de Outubro.

“O meu conjunto de influências, que não consigo decifrar, também tem muito a ver com o trabalho da terra, com o trabalho do mar, da minha família materna e paterna, com o afecto. O meu trabalho tem muito a ver com a vida infantil que eu não consegui largar”

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