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As cadeiras vazias dos direitos humanos

Gonçalo Frota

No momento em que Jorge Andrade resolveu enfiar a cabeça nas intermináveis actas da comissão que integrou os trabalhos de preparação (e aprovação) da Declaração Universal dos Direitos Humanos, fê-lo esperançoso daquilo que ia encontrar. Imaginava o autor e encenador que o espírito por detrás de tal documento, uma bússola ética e moral no respeito por cada pessoa chegada a este mundo, fora movido pelo mais elevado idealismo, insuflado pelo término da traumática II Guerra e pela imperiosa necessidade de paz. Claro que algum desse espírito também terá estado presente durante os três anos em que decorreram as negociações para a redacção do texto final, mas o encenador e fundador (com o cenógrafo José Capela) da companhia Mala Voadora surpreendeu-se com a escassa cerimónia diplomática entre os representantes de países que, assim que se sentaram à mesa, desembolsaram de imediato de “discursos bastante violentos”.

Não foi apenas por farejar esse conflito aberto que Jorge Andrade e José Capela decidiram levar para palco essas sessões de trabalho sob o título Universal Declaration of Human Rights, com estreia absoluta no Escher Theater, Capital Europeia da Cultura luxemburguesa, em Junho de 2022, e agora chegada à Culturgest, Lisboa, com apresentações de 28 a 30 de Setembro. Mas também, e num primeiro momento, pela curiosidade no processo que teria levado à elaboração da declaração adoptada pelas Nações Unidas em 1948, nas discussões que teriam acontecido à volta da mesa, na forma como o entendimento teria sido obtido e nos bastidores desta bitola para uma conduta comum assumida entre nações que nem sempre observam os direitos ratificados e, por vezes, atropelam deliberadamente tudo aquilo que ficou convencionado — sabendo que o mundo fechará os olhos com vista à manutenção de boas relações económicas. E se assim acontece, nota Jorge Andrade, tal deve-se à não existência de “um mecanismo que funcione como polícia internacional”. Não que o encenador o deseje, mas trata-se de uma constatação de base — não havendo, regra geral, consequências directas para o desrespeito pelos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a sua adopção é sobretudo uma questao de boa fé e boa vontade.

Pode, ainda assim, existir um espectáculo potencial nas actas (e nos relatos escritos) que documentam as infindáveis sessões para a discussão do documento? Jorge Andrade concede que pouco há de teatral neste material. Mas a Mala Voadora tem trabalhado, com frequência, a partir de modelos pouco convencionais, passando, em vários momentos, pela chamada ao palco de alternativas à verdade histórica, falsas gravações de sitcoms inspiradas pelo capital, remakes da série televisiva Dallas ou tentativas de chegar à morte através de delírios de ficção científica. Neste caso, não é apenas atracção pelas gavetas da burocracia, mas também pelas minudências dos processos humanos. Ou seja, em Universal Declaration of Human Rights há uma sedução clara pela minúcia linguística que se torna a arma de eleição para os duelos entre países e distintas visões sobre a vida em sociedade. E com as minudências linguísticas — a oposição a determinada palavra, a preferência por outra que carregue menos peso ou permita uma maioir latitude interpretativa e, por conseguinte, alargue a malha por onde escapar a futuras condenações — vêm também as dificuldades de tradução, a revolta com as línguas de trabalho adoptadas (inglês e francês), o natural sentimento de exclusão por todos aqueles que não tiveram assento na discussão.

Se houve queixas iniciais acerca dos países que não estavam representados — sendo que Alemanha e Itália, devido aos regimes fascistas derrotados na II Guerra, estavam eliminados à partida —, o número de participantes alargou e encolheu, até alcançar a composição final de 58 países votantes (foi aprovada com 48 votos favoráveis). Daí que na peça, em torno da mesa de trabalho onde se reúnem vinte actores, dezenas de cadeiras surjam forradas com bandeiras dos ausentes. E a música, com assinatura de Pedro Coquenão (Batida), privilegie também fontes e arquivos sonoros daqueles que não tiveram o privilégio de contribuir para um texto que pretendia falar para e por toda a humanidade. Claro que num mundo que começava a organizar-se entre dois blocos geoestratégicos, o da NATO e o do Pacto de Varsóvia, o consenso seria sempre pouco mais do que uma miragem e, fechado o debate, recorda Jorge Andrade, “houve logo países que disseram que não iam subscrever — o Bloco de Leste por inteiro e, depois, o Canadá”. “Só que o Canadá, quando viu os países que ficaram ao seu lado, voltou atrás.”

Sinalizar os esquecidos

A colaboração da Mala Voadora com Pedro Coquenão começou a ganhar sentido depois de Jorge Andrade se cruzar com a música dos IKOQWE (Batida + Luaty Beirão) e que, também devido ao discurso politizado do duo, começou a fazer sentido ao encenador pela defesa dos direitos humanos que os músicos colocam em palco. Depois de ter pensado nessa hipótese, a sonoridade de IKOKWE começou a infiltrar-se na sua projecção da peça e a encaixar na ideia de que os artigos a votação aparecessem repetidos uma e outra vez em ecrãs, associados a sons que se entranhariam de igual maneira. A presença da música ganharia depois maior importância ao impor o ritmo das participações e ao criar este efeito de que, em boa parte, as discussões são circulares, avançam e recuam, à medida que os representantes de cada país levam as propostas de artigos para aprovação e voltam com novas objecções, novos reparos, novas alterações, tornando o processo quase inesgotável.

No palco, a Mala Voadora opta por sinalizar as ausências. Não apenas dos países omissos, reforçando a ideia de uma moralidade ocidental e privilegiada imposta ao resto do mundo com reduzido poder negocial, mas também a falta de direitos pouco discutidos no final da década de 1940. Optando por não introduzir novos direitos que deturpassem o texto original, a Mala Voadora não resistiu, no entanto, a apontar para as questões ambientais.

“Quando comecei a investigar”, explica Jorge Andrade, “percebi que começava a haver na Nova Zelândia ou na América do Sul um debate sobre direitos de rios, de montanhas, etc. E pareceu-me que aí poderíamos fazer uma ponte para outras questões que, na altura, nem se vislumbravam como podendo gozar de direitos.”

Também por isso, o palco de Universal Declaration of Human Rights vai sendo esvaziado e dando lugar a uma paisagem. Uma forma de lembrar o que ficou esquecido então e que hoje continua a ser menosprezado em larga escala pelos governos, mas também de apontar ao antropocentrismo e aos vícios humanos que acabam sempre por comparecer nestas salas de discussão, em que cada um defende os interesses político-militareconómicos do quinhão de terra onde calhou nascer.

A partir das actas e dos relatos das sessões de trabalho, a Mala Voadora põe em palco a Universal Declaration of Human Rights, de 28 a 30 de Setembro, na Culturgest. Uma peça apontada às discussões, aos idealismos e às desilusões dos consensos pela paz.

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2022-09-23T07:00:00.0000000Z

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