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O corpo de baile colectivo de Victor Hugo Pontes é um gesto político

Camilo Soldado Paulo Pimenta

Sete intérpretes com corpos de escalas e histórias diferentes unem-se no palco do Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal. Juntos e em movimento, já não se representam a si mesmos, mas um Corpo Clandestino, a nova criação do coreógrafo português.

Éuma verdade universalmente conhecida que todos os corpos são diferentes entre si, mas cada corpo é diferente à sua maneira. Parte dessa diferença está camuflada no quotidiano, não é visível ou não a queremos ver. Victor Hugo Pontes trá-la à luz, junta-a em palco e forma um colectivo que se move com a complexidade de um gesto político.

O que é um corpo de baile? Intérpretes todos iguais, elegantes, mas atléticos, a fazer os mesmos movimentos? No momento em que olhamos para as silhuetas das seis figuras em palco, que nos fitam sob um véu semi-transparente, e nos apercebemos da disparidade de alturas e volume, recebemos a resposta do coreógrafo: não.

Em Corpo Clandestino, que tem estreia marcada para este sábado, dia 24, no Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, e nova data no dia 25, Victor Hugo Pontes quis construir um “corpo de baile colectivo”, embora “feito de pessoas muito singulares e com uma fisicalidade muito própria”. Há momentos de uníssono entre os intérpretes, “mas os uníssonos deles são todos interessantes, o gesto nunca é similar”.

A palavra “clandestino” surge aqui no sentido de não serem reconhecidos. Somos clandestinos até termos documentos, até sermos aceites. Os corpos dos intérpretes do novo trabalho de Victor Hugo Pontes ainda não estão nesse ponto de reconhecimento “porque a sociedade ainda não os integrou. Continuam a ser clandestinos”. A própria presença destes corpos em palco, a dançar, é um gesto político.

Não são a norma e o artista assume essa afirmação. “Mas não sou eu que sinto isso. Não é a norma para eles: não é a norma porque, quando a Ana Afonso Lourenço vai a uma casa de banho pública, o trinco está a uma altura que ela não consegue fechar; não é a norma porque a Andreia Miguel vai a um restaurante e, antes, quer perceber se há cadeiras que aguentem com o peso dela e se são estáveis; não é a norma porque o Paulo Azevedo não tem rampas para entrar em teatros ou salas de espectáculo”.

O coreógrafo di-lo apenas para passar pelas questões práticas do quotidiano. Gaya de Medeiros, mulher trans, tem que lidar também com o preconceito, exemplifica. Mas eles, os seus bailarinos, são uma pequena amostra. “Teria que fazer um espectáculo com muito mais gente, porque todos nós somos singulares, de forma mais ou menos visível”.

E Corpo Clandestino também é sobre isso. “Quando confronto os espectadores com estes corpos, estou a colocá-los não diante de um espelho directo, mas diante um espelho indirecto. É sermos confrontados com nós mesmos, mas de outra maneira”, explica o coreógrafo. A cenografia desenhada por F. Ribeiro, com a sua colmeia de espelhos suspensa, envia-nos essa mensagem, ainda que de uma forma subtil: tudo o que acontece em palco pode ser visto de outro ângulo, distorcido. Tudo o que vemos em palco é o nosso reflexo.

O coreógrafo volta a olhar para fora da bolha da dança — ou dos percursos profissionais — para encontrar os seus intérpretes, como fez com Margem (2018) ou com Meio no Meio (2021). É possível que Paulo Azevedo seja a cara mais reconhecível deste Corpo Clandestino. O actor que nasceu sem membros superiores e inferiores já leva anos a normalizar os corpos

diferentes através do seu corpo e da sua presença no pequeno ecrã, ao assumir papéis em novelas e atingir uma visibilidade pouco comum. Num mundo “muito preconceituoso” como o da televisão, Paulo Azevedo quis “mostrar que as pessoas diferentes são tão capazes como qualquer uma”, diz ao Ípsilon.

Victor Hugo Pontes encontrou-o através de outro meio, o Instagram, a trabalhar com a Terra Amarela de Marco Paiva, e achou que se encaixava na sua nova criação. O espírito que o actor leva para este novo terreno é o mesmo, mas dançar é outra coisa. Tem uma fisicalidade e linguagem “completamente diferentes”, conta. Habituado a orientar-se por um texto, ter o movimento com fio condutor foi um lugar “estranho”.

Não se via como bailarino, nunca o tinha feito e a ideia parecia-lhe inconcebível. Mas, às vezes, “o impossível está apenas aqui, na nossa cabeça”. Interessa-lhe a possibilidade “de falar mais com o corpo do que com palavras” e “perceber que poder contar uma história com o corpo é muito profundo”. “O mais bonito da coisa é sermos todos diferentes e não haver o estereótipo de uma coreografia perfeita com todos iguais, a fazer a mesma coisa”, acredita.

Antes da dança, Ana Afonso Lourenço encontrou no teatro o seu lugar seguro. Frequenta uma academia de representação em Braga e, na pela de uma personagem, tem menos receio dos olhares que julgam. “Quem está em palco sou eu, mas não sou”. Foi em Braga que a equipa que estava a trabalhar em Corpo Clandestino a encontrou, através de Cristina Cunha, que conhecia uma professora de Ana e que com Victor Hugo assina os figurinos desta nova criação.

Ao trabalhar com o coreógrafo, Ana Afonso tem a sua primeira experiência na dança, ultrapassadas que foram as dúvidas. “Sentia que o meu corpo era muito preso e descobri que era possível fazer muita coisa”, conta. Talvez outra pessoa achasse alguns desses movimentos simples, diz. Dá como exemplo o pino. “Mas, para mim, é algo mesmo desafiante”. Passada essa fronteira, “arrisca-se e começa-se a levar o corpo ao limite”, descreve.

O coreógrafo chamou Valter Fernandes — um habitué nos seus trabalhos — para começar o processo em Setúbal. O criador precisava de alguém que lhe conhecesse a linguagem, que pudesse dirigir a partir de dentro. Acabou por acompanhar a criação até ao fim e representar uma certa norma. Mas lá está: a norma só o é quando está em maioria, lembra Victor Hugo. E ali, Valter Fernandes está em igualdade. Mafalda Ferreira, que terminou o percurso formativo no Balleteatro também integra o elenco.

Na procura por corpos distintos, encontrou também Joãozinho da Costa, que já trabalhou com coreógrafos como Rui Catalão, Marlene Monteiro Freitas ou Diana Niepce, mas que tem igualmente criações em nome próprio, nas quais trabalha as raízes guineenses. A bailarina Gaya de Medeiros, que assina também um percurso autoral forte, veio significar a presença de um corpo que tenha sido mudado.

Entender o percurso de Victor Hugo Pontes, que vem das artes plásticas, talvez seja uma chave importante para ler este Corpo Clandestino. “Para mim, coreografar é fazer um desenho em tempo real e estes corpos são volumes, manchas, fazem gestos. Para mim, fazer um dueto entre o Joãozinho e a Ana Afonso, ou entre a Andreia e a Ana Afonso, é trabalhar uma relação de escalas muito distintos”

Uma lesão de Andreia numa das semanas de ensaio prova-o. A intérprete foi substituída temporariamente, mas o espaço que “ocupa não funcionava da mesma forma com outro corpo”. Havia um vazio. É com estes contrastes que Corpo Clandestino joga, tanto nos momentos em que há uma mole humana de forma indiscernível em palco, como nos duetos que parecem um combate pelo direito a estar ali, a ocupar aquele lugar usualmente tomado por outros corpos.

Nas práticas artísticas, há um discurso recorrente sobre inclusão que leva a um caminho delicado. Este não é um trabalho sobre inclusão. “São pessoas que estão a fazer um espectáculo de dança e que normalmente não ocupam este tipo de espaços”, diz Victor Hugo Pontes. Os intérpretes foram escolhidos pelas suas especificidades físicas e isso é óbvio, está em palco, mas não é o foco.

Tanto que o coreógrafo dispensa um protagonista. “Queria que fosse um corpo único. Vamos fazendo um zoom em cada um deles, mas sempre dentro de um colectivo”, diz. Com efeito, os mais belos quadros em cena são criados quando o indivíduo se funde numa massa comum banhada de luz, quando os corpos dos sete intérpretes se entrelaçam em movimento lento.

Puxando atrás a fita do tempo, Renzo Barsotti cruzou-se com Victor Hugo Pontes em Provisional Figures Great Yarmouth, o trabalho no qual Marco Martins pôs em palco percursos de emigrantes portugueses nos corpos deles mesmos, em 2018.

O produtor italiano ficou com o nome do coreógrafo debaixo de olho e, quando assumiu a direcção da Rota Clandestina, um projecto de criação artística promovido pelo município de Setúbal, convidou-o para dirigir um projecto que tivesse no corpo o seu ponto de partida. A sugestão, feita ainda num tempo prépandémico, era reflectir “sobre uma sociedade em que a presença física é cada vez menos indispensável”, explica Barsotti, ao ÍPSILON.

Entre tudo o que foi dito, dessa primeira conversa, Victor Hugo Pontes reteve duas palavras que levaria consigo até ao fim do processo: “corpo” e “clandestino”.

Teve a primeira residência em 2020, começou a explorar a ideia do físico e procurou intérpretes na comunidade local. Foi assim que chegou ao ginásio de Ana Miguel, mais habituada à área comercial e da banca, na qual é formada. “Eu não estava lá, mas toda a gente me recomendou”, conta. Participou nas residências artísticas e fez da dança “uma descoberta”, assinalando que o contraste entre corpos em palco ajuda “a perceber o espaço do outro”.

Nessa primeira experiência, percebeu o que não queria fazer: não queria focar-se na biografia de quem fosse para o palco, nem tratá-los como elementos singulares, mas sim como um colectivo.

Olhando para resultado deste trabalho que depois das duas datas em Setúbal só regressa aos palcos em 2023, já com datas marcadas para a Lisboa, Guimarães, Leiria, Braga, Porto e Ovar, mas também para Liège, em 2024, o coreógrafo concede que alguns desses elementos acabam por entrar, mas “sempre de forma muito subtil”. Por vezes, os intérpretes nem sabem que foram a fonte da proposta de Victor Hugo, seja através de conversas ou de gestos. Tal com as histórias dos intérpretes, o gesto político está lá, mas não de forma literal.

“Queria que fosse um corpo único. Vamos fazendo um zoom em cada um deles, mas sempre dentro de um colectivo”, diz. Com efeito, os mais belos quadros são criados quando os corpos dos sete intérpretes se entrelaçam em movimento lento”

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2022-09-23T07:00:00.0000000Z

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