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“Os nossos corpos são territórios a proteger”

Ma a Megi escreve um ép com acçã na gue de 1935 na Etió O Rei-Som a des tod o tipo fronteiras.É retrato sem her sobre a contradiç o trauma, a cul o interdito, o cor sobretudo o fe ni e omodo co e instrument iz e o a s .

lina. Depois houve outra vaga, nos anos 60 e 70, em que africanos escreveram a sua versão dessa História. Agora há uma nova geração com mulheres a dizer que a História deles não é necessariamente a nossa e que a primeira versão, a europeia, não é definitivamente a sua versão. Estamos a começar a ter uma perspectiva feminina e a História africana a ser falada e escrita enquanto uma História global, mundial, e não apenas enquanto História africana. História mundial é também a História da Etiópia, do Quénia, da Tanzânia.

Fico muito contente por fazer parte do grupo de escritores que estão a fazer isso e, como disse, não sei bem como é que começámos, quase ao mesmo tempo. Acho que tem a ver com o acesso à educação com a migração. O resultado começa a surgir a agora.

Também em relação ao feminino. Estamos a falar e a aprender uma parte da História de que até há pouco não era suposto saber-se ou falar-se, como o papel das mulheres em diferentes movimentos de libertação, em diferentes guerras e conflitos. Quando Abdulrazak Gurnah venceu o Nobel, a Maaza escreveu um artigo no Guardian onde falava de como o escritor transformou a experiência do exílio em literatura. Muitos questionaram a identidade africana de Gurnah e houve quem criticasse o facto de ele escrever em inglês, a língua do colonizador, e não numa das suas línguas de origem.

Acho isso distracção. São argumentos atirados deliberadamente para evitar falar da literatura, da criatividade do escritor. Abdulrazak Gurnah é um dos escritores mais talentosos que temos. Perguntar-lhe de onde vem ou como se identifica é ignorar a sua inteligência, a sua criatividade e as mensagens que ele está a passar nos livros. As pessoas levantam essas questões para se sentirem mais confortáveis no seu mundo em vez de o expandirem. Perguntar “de onde vem?” é simplificar quem somos enquanto escritores. E quando quem escreve é mulher há ainda mais perguntas: “Onde estão os seus filhos? Como é que consegue cozinhar?” Isso evita que se olhe para o trabalho intelectual.

São perguntas na fronteira da literatura.

Absolutamente. E se eu responder de forma satisfatória, a pessoa que faz a pergunta sente-se mais segura na sua posição. “Eles estão ali, eu estou aqui e tudo está arrumado e o mundo pode ser entendido”. A Damon Galgut, que ganhou o Booker, não lhe perguntamos em que língua escreve e porquê. Abdulrazak diz “Sou de onde venho”. E também: “Sou alguém que emigrou, e escrevo sobre tudo isso”.

Também sou bastante de onde venho e escrevi um livro que se situa num momento histórico, mas fui inspirada por histórias de mulheres em todo o mundo, mulheres que lutaram em movimentos de libertação e em revoluções na Europa, em África, na América Central e do Sul. Essas histórias ajudaram-me a escrever esta. O cenário é a Etiópia, mas se alguém me perguntar que país é esse diria que é o país das mulheres e é o país da imaginação, e que nesse país não há fronteiras. Para onde forem as mulheres a sua imaginação vai junto com o seu corpo. O corpo também é um país e quis explorar isso, investigar isso, não as fronteiras geográficas. Quis investigar isso e saber que os nossos corpos são territórios a proteger. O nosso corpo é um campo de batalha, em relação a género, a raça. Mas o corpo contém qualquer coisa mais, que é maior e mais eterna do que o próprio corpo. Todos os regimes ditatoriais tentam destruir isso.

Este livro parte de uma história familiar.

Foi um projecto longo. Falámos dele há quatro anos, quando ainda estava a escrever e sem saber se alguma vez o iria terminar. Estava aterrorizada com a ideia de não conseguir terminar. A ideia veio de histórias que ouvi quando pequena, de homens na minha família que lutaram na guerra, que fizeram parte da milícia ou da guerrilha contra os italianos. A história que ouvia era de homens pobremente equipados, com armamento ultrapassado, sem treino militar, sem estratégias modernas, que corriam à frente das balas para que os italianos as desperdiçassem e as armas dos etíopes pudessem ser carregadas. Essas histórias tornaram-se míticas, ganharam uma proporção diferente na minha imaginação. Quando na adolescência li a Ilíada, de Homero, foi a primeira vez que li num livro a palavra Etiópia. Depois li as cenas de batalhas e percebi que aquilo já estava antes na minha cabeça. Era o que eu sabia que se tinha passado, e a palavra Etiópia traduziu-se na minha imaginação por guerra de Tróia, com Aquiles, Heitor; todas esses foram como que transferidos, mesmo as roupas eram muito parecidas. Foi uma revelação, como se percebesse de onde vinha a inspiração de Homero. Adoro Homero porque é como se ouvisse nele ecos da minha infância.

Descreveu o processo como longo. Consegue identificar o momento em que essa espécie de saber ancestral e de história pessoal ganharam um sentido literário?

No início estava a escrever as histórias dos homens que conhecia, os homens da minha família, e comecei a fazer pesquisa. Vivi em Roma durante algum tempo e pouco depois de me ter mudado fui ao Sul de Itália. A maior parte dos soldados que combateram na Etiópia vieram de lá, do Sul. Eram pobres, não tinham estudado, não eram os oficiais. Na Calábria perguntei-me se iria encontrar por ali alguma parte dessa história, porque aquele tinha sido um dos principais locais de origem desses soldados. Estava numa livraria para a apresentação do meu primeiro livro e no fim um homem levantouse e disse que gostava de falar de 1935. A sala inteira ficou em silêncio, sentia-se a tensão, algumas pessoas disseram-lhe para se sentar, que não era o momento. Ele disse que tinha de me perguntar uma coisa e estava visivelmente emocionado. Disse que o pai tinha sido piloto na guerra contra o meu povo e que tinha lançado gás-mostarda. E começou a chorar. Continuou: “Como posso ter o seu perdão?”. Eu não sabia o que dizer. Também fiquei comovida porque ele estava a chorar e as pessoas estavam desconfortáveis. Disse-lhe qualquer coisa como: “esta conversa é um dos caminhos para a reconciliação, porque não se tem falado disto”. Pediume para não ir embora, que voltaria. E voltou com um livro, uma auto-publicação, os diários do pai, as cartas, fotografias do tempo em que esteve na Etiópia. Disse que era para mim, para eu fazer com aquilo o que quisesse.

Como é que isso mudou o livro? Percebi que toda a pesquisa que tinha feito não me dizia o que significara para um jovem de uma aldeia pobre, que antes nunca tinha saído de casa, ir de repente para África e ser confrontado com uma coisa chamada guerra. Havia ali muita crueldade, histórias que me mostraram aqueles homens, como sentiam a falta de casa, como estavam aterrorizados. Aprendi também ali que eles eram amados e que amavam. Como é que escrevo isso num livro? Mudou totalmente.

Eu estava com muita raiva quando comecei a escrever a primeira versão e achei que não podia escrever a partir da raiva. Aquele homem ajudoume nisso. As lágrimas dele vieram da vergonha, mas também de um filho que amava o pai e não era capaz de perceber o outro lado desse pai. Os danos da guerra vão para outras gerações e não apenas para as pessoas que estiveram a combater. Aquela guerra não acabou, continuou. Ele era o único capaz de falar.

Quando voltei para Roma deixei de ir a bibliotecas e comecei a ir a feiras de rua, de velharias, à procura de mais fotografias, de mais diários, cartas e tirava uma frase ou duas sobre uma mulher no campo de batalha, uma fotografia de uma mulher com uma arma. O que era aquilo? E isso mudou outra vez tudo.

Esses diários também lhe ajudaram a encontrar o tom ou a estrutura do livro?

Não. A minha pergunta era: “Como posso chegar à estrutura de um romance capaz de reflectir a história, a memória e o tempo?” Isso levoume de volta a Homero e à Ilíada

“Estamos a começar a ter uma perspectiva feminina e a História africana a ser falada e escrita enquanto uma História global, História mundial, e não apenas enquanto História africana”

e às tragédias gregas. Comecei a pensar nos escritores que sempre admirei.

Por exemplo?

Escritores do Leste da Europa que escreveram à sombra da Cortina de Ferro, escritores que escreveram durante ditaduras, como a croata Dasa Drndic. Com o trabalho deles e o trabalho da era soviética aconteceu qualquer coisa com a linguagem muito semelhante ao que aconteceu com a linguagem na Etiópia. As palavras têm duplos sentidos, há uma poesia na frase e quando olhamos para ela uma e outra vez ela vai ganhando novos sentidos.

Saber italiano ajudou?

Muito. No ritmo. No ritmo das frases. O inglês é plano. A língua amárica [uma das línguas da Etiópia] é como uma canção — a voz sobe e desce de tom —, o italiano também. Eu queria isso, que as frases se assemelhassem a uma dança, como qualquer coisa que fluísse [faz os gestos com as mãos] e queria que isso também se reflectisse no romance.

Falou em canto. O livro é marcado por ele enquanto modo de contar histórias. E o coro como na tragédia clássica.

Sim, justamente por causa do coro grego. O coro surge e tem a capacidade de mudar a trama. Ele pode dizer-nos qualquer coisa que a história e as personagens não estão a dizer. Com o coro temos uma versão da Etiópia que complementa as versões que vêm do cruzar de perspectivas. E o coro também é como uma canção. Tenho a certeza que há muitas outras culturas, além da etíope, onde as pessoas cantam as notícias. Em muitas aldeias a história dessa aldeia era lembrada através de uma canção. Homero tinha o coro, e todos os gregos, mas eles não o inventaram. Acontecia por todo o mundo. Temos na tradição o asmari. O asmari lembra o que aconteceu numa batalha e canta uma canção verdadeira. As pessoas ainda lembram certas coisas por causa dessas canções. Eu quis prestar homenagem a isso. Mas foi duro chegar aí. Quando estava a pensar como é que isso podia fazer sentido num romance, disse a mim mesma: “Tenta. Se falhares neste livro, falha em grande!” Era a oportunidade. Tinha escrito uma versão horrível, uma história dos homens baseada na minha pesquisa do que aconteceu. Não podia guardar essa versão. Se era para começar do zero, ia arriscar. De qualquer forma já estava atrasada, já toda a gente tinha desistido de mim, já ninguém acreditava que eu o fosse escrever por isso ia fazer o que quisesse. Foi assim que comecei muito devagar.

Qual foi a primeira personagem que apareceu?

Foi o coro. E o coro chegou porque eu me perguntava quem é que me estava a contar a história. E um dia, estava sentada não me lembro onde, e tinha o meu caderno de notas, e veio a ideia: os mortos estão a contar-me isto. Anotei.

A voz narrativa é a dos mortos?

E estão zangados. Zangados porque não estão a ser ouvidos, ninguém os escuta. E imaginei um coro de mulheres e comecei a escrever o prólogo e os mortos vieram: “temos de ser ouvidos, não podemos ser ignorados”. Deixei ir, por instinto.

Outro elemento estrutural são as descrições das fotografias. Uma imagem parada que começa a ganhar movimento narrativo e é uma espécie de guia para a história ali contada.

Funcionam como guias a partir das quais o livro se desenvolve, uma imagem parada que começa a ganhar movimento.

As descrições partem de imagens reais?

Sim. Se não fiquei com essas fotografias, vi-as. Tinha a opção de pôr no livro as fotografias físicas, ou podia apenas escrever a cena, como num livro comum, mas queria olhar para a fotografia como outra arma na guerra. Sei que a fotografia faz parar o tempo e congela um momento, aprisiona uma memória e se este é um livro sobre memória então eu precisava de pensar como fazê-lo e devia ser dentro do livro. Mas se usasse as fotografias estava a participar numa versão. Os regimes militares, as ditaduras, exércitos fascistas gostam de fotografias. A fotografia de uma vítima, de alguém que eles controlam, é uma fotografia daquele ser humano mas é também um autoretrato do poder. É a fotografia deles em controlo. Comecei a olhar para as pessoas em cada uma daquelas fotografias como alguém instrumentalizado pela câmara. Seriam prisioneiros a caminho da morte? São todas auto-retratos do poder italiano. Era o império italiano, era o poder italiano. Não é a pessoa que está na imagem. Precisava de ir mais fundo e retirar a pessoa daquele contexto para a deixar começar a falar. As fotografias movem-se para a pessoa que está a falar. Pode ver-se a erva, as árvores, o que está a acontecer e que já não é acerca dos italianos mas sobre quem está naquele enquadramento.

Todas as imagens vieram dessas feiras?

Sim. Andei por toda a Itália. Fiz amizade com alguns dos vendedores que me enviavam mensagens quando descobriam alguma coisa. Uma vez perguntei a um deles como é que tinha todas aquelas coisas e contoume que quando aqueles homens morriam as famílias queriam livrar-se daquelas memórias, não queriam ter de pensar naquele período. Houve outros momentos em que a reacção dos vendedores não era amistosa. Na Itália, há quase sempre uma bancada a vender símbolos fascistas. Muita coisa sobre Mussolini, revistas do período fascista, medalhas. Quando ia lá, eu, uma mulher negra, e lhes perguntava se podia ver o que tinham do período colonial, mandavam-me embora, que aquela banca não era para mim, que aquela não era a minha história. Se pegava em alguma coisa alguém ia tirá-la das minhas mãos e ia afastar-me. Passei a levar algum amigo italiano e pedia para ir a determinada banca e dizer-me o que via. E foi assim que consegui as coisas. Isso continua a acontecer. Itália não lidou ainda com esta parte da sua História e as pessoas não sabem como reagir.

E na Etiópia, sabem lidar com esse passado?

Não. Na Etiópia as histórias são sempre sobre bravura, resistência, ninguém fala das experiências traumáticas da guerra, o que viveram as mulheres durante a guerra, o terror que foi infligido em toda a gente. Não se ouve ninguém dizer que teve medo e não há discussão sobre o que aconteceu de facto. Os italianos tinham campos de concentração por todo o país. E tinham campos de concentração na Eritreia, na Somália, levavam mulheres e crianças para esses campos. Fizeram isso na Líbia e destruíram por completo algumas regiões. Não restou ninguém. Não se discute isso. Agora que o livro saiu e as pessoas estão a lê-lo na Etiópia, recebo mensagens a perguntar se ajudo a encontrar um tioavô que desapareceu. É a primeira vez que estou a ouvir falar dessas histórias dessa forma.

“Fui inspirada por histórias de mulheres em todo o mundo, mulheres que lutaram em movimentos de libertação e em revoluções na Europa, em África, na América Central e do Sul. Essas histórias ajudaram-me a escrever esta. O cenário é a Etiópia, mas se alguém me perguntar que país é esse diria que é o país das mulheres e é o país da imaginação, e que nesse país não há fronteiras”

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