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Chico César canta um amor colectivo que não esquece os “espinhos” sociais

Nuno Pacheco

Oseu primeiro disco, que o lançou na ribalta em 1995, intitulou-se Aos Vivos e é “aos vivos” que Chico César continua a falar das coisas que lhe passam pela cabeça e pela alma, hoje como sempre. Todos se recordarão de Cuscuz Clã (1996), Beleza Mano (1997), Mama Mundi (1999) ou Respeitem Meus Cabelos, Brancos (2002), a que se seguiram De Uns Tempos Pra Cá (2006) e Francisco, Forró y Frevo (2008). A mais recente trilogia, apanhando o Brasil em tempos de maior ebulição política, deu-nos títulos como Estado de Poesia (2015), O Amor é Um Ato Revolucionário (2019) e, agora, Vestido de Amor, que chega às plataformas digitais e às lojas esta sexta-feira e que ele vai lançar ao vivo em Portugal no mesmo dia, no festival Mimo, no Porto (Largo Amor de Perdição, 22h30) e no próximo dia 29 em Lisboa, no Capitólio, às 21h30.

“Os três últimos álbuns foram separados por esse eclipse da pandemia”, diz Chico César ao Ípsilon. “Como O Amor é Um Ato Revolucionário não pôde ir para a estrada, ficámos enclausurados, isso me fez criar mais e, na primeira oportunidade, uma parte dessas novas canções apareceram neste disco. O amor entra em ambos os álbuns como um sentimento colectivo, que busca um usufruto colectivo do amor.”

Mas apesar da aparente leveza dos títulos, todos estes discos têm canções duras, como dura é a realidade que as inspirou. O primeiro trazia Reis do agronegócio (“Ó donos do agrobis, ó reis do agronegócio/ Ó produtores de alimentos com veneno/ Vocês que aumentam todo ano sua posse/ E que poluem cada palmo de terreno”), o segundo Pedrada (“Cães danados do fascismo/ Babam e arreganham os dentes/ Sai do ovo a serpente/ Fruto podre do cinismo/ Para oprimir as gentes/ Nos manter no escravismo”) e o novo inclui Bolsominions (como vai o “inferninho”?), crítica aberta ao bolsonarismo e aos seus servidores (“Bolsominions são demônios/ Que saíram do inferninho/ Direto pro culto/ Pra brincar de amigo oculto/ Com satã num condomínio”).

As “luzes” da pandemia

Chico César, hábil com a palavra e rodado em jogos de sentidos, explica: “Eu sou um artista e cidadão brasileiro e obviamente crio a partir dessa perspectiva, desse lugar, como cidadão afro-diaspórico-indígena-brasileiro, o que também me dá peculiaridades. Observando como se agravam, sobre determinados grupos humanos, problemas que sempre estiveram presentes na nossa vida, desde antes da pandemia, desde que o Brasil foi inventado em 1500. Então para esses grupos — indígenas, negros, mulheres, ateus, gente de religião diferente, homossexuais — a vida sempre foi pandemia.”

Só que a pandemia trouxe as desigualdades ainda mais à tona. “Essas luzes se acenderam de modo mais forte e mais cruel. Para quem viveu a pandemia na condição de gente pobre, sem poder se apartar, porque na casa viviam oito pessoas ou porque tinha de ir trabalhar num trem lotado, ou quem vive na rua. Diziam ‘fiquem em casa’; e quem não tem casa, fica aonde? A pandemia aguçou esse sentido das condições no mundo todo, porque uma coisa é vivê-la como europeu ou como africano. Inclusive vacinas foram desviadas e isso diz muito do ser humano e de como não estávamos aprendendo muita coisa com a pandemia. No começo houve essa esperança, porque há sempre uns utópicos, mas de repente vimos o pior do ser humano, dos estados, das organizações.”

Do ponto de vista estritamente musical, o novo disco de Chico César retoma ritmos e linguagens nordestinas, do forró ao coco, misturandoos com pop, rock, reggae, rumba ou calipso. E tem como convidados dois grandes nomes da música africana, o congolês Ray Lema e o maliano Salif Keita, que Chico César citava, aliás, em À primeira vista, uma das canções do seu disco de estreia. “Na verdade, quase todos esses ritmos já estão no meu primeiro disco, Aos

Vivos. Aí já temos o nordeste, a África, não é à toa que temos ali a minha música mais conhecida, Mama África, ou a citação de Salif Keita, colocando-o no mesmo patamar do Prince, como dois grandes representantes da diáspora africana em música. Agora, vinte e sete anos depois, tenho a possibilidade de gravar o meu primeiro disco fora do Brasil, em França, com muitos músicos africanos e com esses dois mestres. Para mim, Salif Keita é uma voz tão importante quanto a de Milton Nascimento e Ray Lema é um grande maestro, pianista, jazzista, director de orquestra. Mostram, para mim, a África como potência, não como carência. Optimista, vitoriosa.”

No caldeirão sonoro de Vestido de Amor há também uma canção que soa como uma morna cabo-verdiana, Amorinha. “É uma morna tal como a consigo tocar, do meu jeito. Compu-la quando estava no Uruguai, onde fiquei três meses antes de ir para França. Pensei-a como morna, no acento, no modo de cantar. Não tem o cavaquinho, mas o violão faz um pouco da toada do cavaquinho. Cabo Verde, Brasil, Portugal, têm muito em comum e a junção das melodias europeias com os ritmos trazidos pelos africanos para o Brasil e também para Cabo Verde, acabou gerando essas músicas bonitas, o samba, o samba-canção, a morna, a modinha, com os ritmos africanos tocados de modo desacelerado.”

O cantor compositor paraibano volta a vestir-se de amor ao décimo disco e continua a falar “aos vivos” dos males que atormentam o Brasil e o mundo. O disco é lançado ao vivo hoje no Porto, no Mimo, e dia 29 em Lisboa.

O “caso” Bolsominions

A canção Bolsominions, já aqui citada, foi publicada nas plataformas digitais há dois anos, gerando depois intensa polémica. A sua inclusão neste disco, em plena campanha presidencial brasileira, virá reacendê-la? “A princípio não causou nenhuma celeuma”, diz Chico César. “Mas depois houve a eleição para vereadores, prefeitos e tal, e uma vereadora dessas evangélicas, pentecostais, quis usá-la para galvanizar um certo sector da sociedade a favor dela. E começou a divulgá-la dizendo: ‘Olha, o Chico César fez uma canção contra os evangélicos.’”

Mas não é contra os evangélicos, diz ele: “É contra os ‘bolsominions’ que se apropriaram da fé cristã e que se juntaram com milicianos, narcotraficantes, gente da pior espécie, usando os evangélicos como escudo. Essa vereadora conseguiu um voto de censura a mim, na capital do meu estado e fiquei abismado. Mas isso é típico dos autoritários, que mobilizam a sociedade contra os libertários e querem silenciá-los. Decidi gravá-la no disco para que as pessoas possam olhar para a história do Brasil e ver que alguns artistas se posicionaram de modo veemente contra esse grupo que tomou as rédeas da Nação e a usou a seu favor.”

O Rei Sombra Maaza Mengiste (Trad. Raquel Mouta)

Tinta da China

Onome Maaza Mengiste é um dos mais respeitados na literatura contemporânea. Natural de Adis Abeba, onde nasceu em 1974, saiu do país muito nova depois da revolução etíope do mesmo ano. Etíope, americana, viveu na Nigéria, no Quénia, depois nos Estados Unidos, mais recentemente em Roma e agora em Berlim. O seu segundo romance, O Rei-Sombra, foi finalista do Booker em 2020. Nele, conta numa perspectiva íntima — ou doméstica, prefere dizer — a invasão italiana por parte de Mussolini da Etiópia de Haile Selassie. Dá protagonismo às mulheres, humaniza um imperador cheio de culpa e inventa um rei-sombra chamado Minim que quer dizer Nada e é estranhamente semelhante a Selassie. Estamos diante de uma longa canção onde se destaca o trabalho de linguagem. A escritora explora-a de modo a que a ela se torna uma das protagonistas deste romance sem heróis onde se pergunta quando é que uma guerra acaba realmente ou quanto é que conseguimos guardar na memória do que acontece. Tudo começa com uma criada, Hirut, e uma caixa cheia de objectos, pedaços dessa memória espartilhada. Esta é uma conversa em Lisboa com uma escritora finalmente publicada em Portugal.

O Rei-Sombra parece entrar na tradição de uma geração — aquela a que pertence — que escreve sobre o lugar de origem tendo a experiência do mundo. São quase todos viajantes, emigrantes, expatriados, alguns no exílio, e que dão voz a um lugar integrando-o no mundo. Lugares quase sempre antes narrados por estrangeiros ou por uma geração ainda muito marcada pelo colonialismo e onde se incluem nomes como Chinua Achebe, Wole Soyinca ou mesmo o recente Nobel da Literatura Abdulrazak Gurnah. No seu caso, escreveu um romance sobre a Guerra de 1935 na Etiópia, dando protagonismo às mulheres e aos mais ignorados pela História.

Tem sido maravilhoso e muito inspirador ver mulheres africanas começarem a escrever romances históricos. Pergunto-me: porquê agora? O que está a acontecer agora?

Como referiu, a primeira versão foi europeia e quase sempre mascu

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