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Aqui ninguém mexe nas receitas

Edgardo Pacheco

É imperativo deixar o garfo poisado, pegar no pão e ensopá-lo em molhos ricos. Em Itália isso leva o nome de scarpetta e é coisa fina

Entre inúmeros itens de avaliação de restaurantes, a satisfação das crianças à mesa é um deles, em particular quando ainda não foram contaminadas pelo mais estúpido conceito que os adultos inventaram na avaliação da comida: o aspecto (safa!). Ver uma criança estrangeira, cujos pés ainda não chegam ao chão, à cabeça da mesa, com o pai de um lado e a mãe do outro, a comer polvo, mão de vaca e – pareceu-nos – iscas, na maior tranquilidade e sem fazer caretas, é qualquer coisa que nos faz sorrir. E se a este item acrescentarmos a quantidade de chefs ou proAEssionais da restauração de fine dining a circular pelo espaço, então parece-nos que o local é acertado para quem quer comer comida tradicional portuguesa – mesmo tradicional e mesmo bem-feita. Onde? No Pica-Pau, em Lisboa.

Luís Gaspar trabalhou com chefs estrelados, ganhou prémios cobiçados, é um activo estratégico do grupo Plateform (um caso à parte na restauração nacional pela dimensão, pela diversidade e pelo pensamento estratégico), é humilde, tem eterna vontade de aprender e uma capacidade organizacional de fazer inveja na Alemanha. E foi dele a ideia de criar um restaurante de cozinha tradicional portuguesa, “tal qual ele deve ser, respeitando o receituário testado e apreciado ao longo de gerações e sem manipulação alguma”.

Mas, ripostamos nós, apesar de tudo, Lisboa tem alguns restaurantes com receituário tradicional. “Sim, tem, mas nós, com o Pica-Pau, AEzemos questão de seguir o cânone que foi registado por Maria de Lourdes Modesto, sem concessões. Não há manipulação, não há acrescentos, não há twist, não há invenções.

Por regra, qualquer chef tem sempre a vontade de alterar uma

Pica-Pau

Rua da Escola Politécnica, 27, Lisboa

Tel.: 212 698 509

Aberto todos os dias, das 12h às 16h e das 17h às 23h https://plateform.pt/pt/marca/ pica-pau receita, mas eu sempre achei que faltava coragem para, enquanto chef, deixar o ego de parte. Foi o que AEzemos, assumindo que, aqui, a criatividade é zero. Só temos duas preocupações: produtos de qualidade e pontos de cozedura correctos. De resto, só o receituário clássico.”

O Pica-Pau tem uma carta com inúmeros ícones do receituário português (variam com a estação), mas, nesta altura, os destaques vão para a açorda de gambas (12€) à segunda; mão de vaca à terça (12€); AEletes de pescada à quarta (12€); cozido à quinta (12€); arroz de cabidela à sexta (12€); massada de garoupa e camarão ao sábado (18€) e cabrito assado com arroz de forno e grelos ao domingo (20€).

Avaliemos, então, um almoço no restaurante próximo do Príncipe Real. Tudo começa com dois pequenos pães de Mafra, manteiga Rainha do Pico e, bem fora da caixa, um molho de pica-pau (3€), que é para, só pelo cheiro, nos recordar uma taberna portuguesa. É caso para se dizer que, por causa desse molho, o diabo está nas couves. EnAEm, um exagero porque, como veremos no AEm, os ‘verdes’ não são bem a imagem de marca da casa. Seja como for, com o cativante molho um dos pães desapareceu num sopro.

Passa-se de seguida para uma saladinha de polvo (12€) e uns rissóis de leitão. O cefalópode vinha tenríssimo, com os temperos da praxe, e os rissóis, que são mais inovação do que uma tradição, por causa do recheio, eram gulosos e tão puros que até se sentia o sabor da pimenta branca do molho da assadura do bicho.

Entrando em coisas mais sérias, comecemos pelas iscas de cebolada (de vitela). Somos fãs do petisco, mas não na variante tradicional do corte AEno (preferimos a glândula em cubos e fritos rapidamente em azeite e banha, alho, uma folha de louro e golpe de vinagre no AEm). Sucede que estas tiras não reviravam, pelo que estavam tenras, cremosas e bem temperadas. Se tinham ou não baço raspado, não sabemos.

Quanto ao prato que dá nome à casa, nem são os pequenos cubos de carne que impressionam (tiveram calor na sua conta, peso e medida). O que surpreende mesmo é o molho ligeiramente espesso, bem ligado, acidiAEcado pelo vinagre e pelos pickles e com um picante suave (que também se sentia nas iscas).

Para rematar nos salgados, mão de vaca - coisa leve. Bons enchidos, tendões tenros e tempero correcto. Quanto ao grão, se tivesse cozido mais um bocadinho (ou se tivesse apurado umas horas antes de ser servido), não se perdia nada.

Donde, para as iscas, para o pica-pau e para a mão de vaca é impossível não pedir mais pão, porque é forma civilizada de se absorver caldos tão ricos e apaladados, que são, a nosso ver, o forte da casa. E, por isso, mas não só, talvez se justiAEcasse a oferta de uns vegetais à mesa. Bem sabemos que, com excepção das pencas, dos grelos e do feijão-verde, não temos grande tradição na matéria, mas os tempos são outros. Já ninguém vai cavar terra com uma enxada a seguir ao almoço, de maneira que uns vegetais ajudam a fazer a digestão e nada interferem com o receituário tradicional.

Quanto a sobremesas, muito aveludada estava uma fatia de pudim do Abade de Priscos e perfeitas, fofas e bastante perfumadas estavam as faróAEas. Em matéria de vinhos, cinco estrelas para o serviço a copo.

Com a criação de restaurantes de diferentes perAEs, o grupo Plateform tem a sua quota-parte na “cosmopolitização” de Lisboa. Abrir, nestes tempos, um restaurante de comida tradicional portuguesa, é, também, apanhar o ar dos tempos. A comida de autor e a comida tradicional convivem muito bem. E assim deve ser, mas, hoje, aqueles amigos que antigamente estavam sempre a perguntar-nos por restaurantes que ainda cheiravam a tinta fresca (com um conceito qualquer giro, com gente gira e de preferência em conta) querem agora saber onde se come um bom cozido, uma mão de vaca ou um à Brás. Pois aqui está a solução com este Pica-Pau, que só não leva 19 valores porque na ementa não vimos caras de bacalhau. Isso é que era. Não precisamos da toalha branca pendurada à mesa num prego para limparmos as mãos, como acontecia nas tabernas antigas. É só mesmo as caras, grão-de-bico, ovo, cebola, alho, salsa e azeite do bom. Ah!, e de preferência às sextas-feiras, ao almoço, se não for pedir muito. Nada que Luís Gaspar não desenrasque.

Pica-pau

pt-pt

2022-10-29T07:00:00.0000000Z

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